quinta-feira, 22 de abril de 2010

Faia Brava: Aqui está a nascer a primeira reserva natural privada em Portugal


Áreas protegidas de gestão municipal e particular são a nova linha da frente da preservação de zonas naturais importantes no país. Na reserva da Faia Brava, com 600 hectares, acredita-se que a conservação da natureza é também uma tarefa dos cidadãos.

À porta de um pombal sobranceiro ao vale escarpado onde o rio Côa serpenteia, ainda indomado, uma cama de penas no chão de granito diz-nos que a hierarquia da cadeia alimentar funcionou a favor de uma das aves que, lá de cima, parece vigiar a nossa incursão na reserva da Faia Brava. Não terá sido o grifo, como necrófago que é. Provavelmente a matança foi coisa de águia-real ou da águia-de-Bonelli. Esta última, com o abutre-do-Egipto, foi uma das espécies cuja conservação animou, há uma década, o trabalho inicial da Associação Transumância e Natureza, estando na origem de uma reserva natural hoje com 600 hectares e prestes a ganhar o estatuto de primeira área protegida privada do país.

Estamos na região do Riba-Côa, no concelho de Figueira de Castelo Rodrigo, com Cidadelhe, já do lado de Pinhel, a pontuar de branco a crista oeste deste vale fechado em que o rio imortalizado pelas gravuras rupestres abre o seu caminho até ao Douro. As escarpas, assim inacessíveis, são óptimos locais para pouso e nidifi cação de aves rupícolas (ou aves das rochas, literalmente), que aqui, como na área vizinha do Parque Natural do Douro Internacional, se adaptaram às transformações impostas pela presença do homem na paisagem, reconhecíveis nos pombais caiados de branco, nos caminhos abertos pelos rebanhos de ovelhas, nos montados de sobro e azinho, e nos olivais que, parecendo desafi ar as regras do equilíbrio, se estendem encosta abaixo.

O problema é que, quase tanto como as aves, perdoando-se o exagero, nesta zona do país o homem é bicho a merecer pelo menos o estatuto de espécie quase ameaçada, de tão poucas que são as pessoas que se vêem nos caminhos percorridos desde esse lugar de nome premonitório, Vilar de Amargo, na estrada EN322, que liga Almendra a Figueira de Castelo Rodrigo, até este vale que lhe corre paralelo. E o despovoamento trouxe vários desequilíbrios a uma área que, para efeitos de conservação, até está incluída na Zona de Protecção Especial (ZPE) do Vale do Côa, mas que se apresenta desprotegida perante vários perigos: como o do fogo que, em 2003, aqui lavrou durante 15 dias, destruindo 1500 hectares da ZPE e matando um terço dos sobreiros com mais de 50 anos.

Era o terceiro ano do projecto Faia Brava. Mas aquele incêndio, um sério revés, foi também um consequências na vegetação e, consequentemente, nas condições de vida das aves e das outras espécies que a ATN tenta proteger.

Avistado abutre-negro

O fogo acelerou um processo evidente de degradação daquele ecossistema, de onde, por falta de alimento, foram desaparecendo espécies que, por sua vez, alimentavam estas aves. “Em 15 anos, a população da águiade- Bonelli caiu para metade”, contabiliza Alice Gama, notando que a zona delimitada pelo Douro, a norte, o Águeda, a leste, e o Côa, a oeste, é, em Portugal, o segundo habitat mais importante desta espécie, depois da serra algarvia. Há, na área da Faia Brava, um casal, que já teve crias, entretanto. Já a águia-real, notícia pelo seu quase desaparecimento no Parque Nacional da Peneda-Gerês, vive nesta região do país melhores dias, e um casal vagueia pelos territórios do Riba-Côa, onde nidifica ainda uma família de cegonha-negra.

Quanto aos necrófagos, agradecem bem a comida que recebem do alimentador de abutres construído pela ATN, que contabiliza a presença, todos os anos, de quatro casais de brintango, o nome local para o abutre-do- Egipto, e uns cinquenta pares de grifos, estes presença constante nos ares. E há dias, já depois da nossa passagem pela reserva, foi de novo avistado um abutre-negro na Faia Brava.

“É uma espécie extinta como nidificante em Portugal, com indivíduos em dispersão entre Portugal e Espanha, e que no futuro próximo pode voltar a nidificar em Portugal. Quem sabe no Côa?”, explicava, num e-mail cheio de esperança, a bióloga que lidera a jovem equipa técnica da ATN, da qual fazem parte ainda um engenheiro fl orestal, que tem o apoio de dois trabalhadores permanentes, e Fernando Romão, o nosso guia e responsável pela tarefa, ainda praticamente a começar, de divulgação turística deste espaço, uma valência cujo retorno fi nanceiro será outra fonte de receita para o muito que há a fazer para assegurar, e aumentar, a biodiversidade neste vale ao qual Alice gostaria, um dia, de ver regressar o lobo.

Com recurso a trabalho próprio e a acções de voluntariado, a ATN começou por recuperar oito pombais. Perto de um dos que visitámos, as moscas e o cheiro a carne putrefacta, restos do talho, diz-nos Fernando Romão, atraem-nos para o alimentador dos abutres. No caminho até à zona escarpada, uma manada de garranos faz-se à fotografia, assinalando outra das acções mais bem sucedidas da ATN, que, lançado um apelo na Internet e entre os associados, conseguiu “adoptantes vitalícios” (por 150 euros) e anuais (50 euros) para comprar 25 cavalos desta raça. Número bastante para o cercado de cem hectares construído para albergar os animais, que entretanto já se vão reproduzindo.

Os garranos são outros trabalhadores da Faia Brava, já quecontrolam os matos e fertilizam os solos, apoiando assim os objectivos de contenção de incêndios e de repovoamento florestal, que entre 2005 e 2008 levou à plantação de 15 mil árvores de espécies autóctones, num esforço que tem sido continuado. As operações de gestão da população de coelho-bravo, o cultivo extensivo de cereais, como o trigo e o centeio (que aumentam o alimento disponível para as presas das aves de rapina, como o coelho e a lebre, a perdizvermelha, o pombo-da-rocha e o pombo-torcaz), os projectos de recuperação dos cursos de água e muitas outras acções assinaladas nos relatórios anuais e no “excelente” plano de gestão da Faia Brava levam o Instituto de Conservação da Natureza e da Biodiversidade (ICNB) a olhar para a reserva da ATN como algo que tem tanto de “pioneiro” como de “ímpar”.

“É uma aprendizagem conjunta. Esperamos concluir em breve o processo de classificação da Faia Brava”, explica ao PÚBLICO Anabela Trindade, vice-presidente do ICNB. “Temos esperança de que sirva de exemplo e que venha a ser reproduzido noutras zonas do país”, admitiu, argumentando que a conservação da natureza não pode depender apenas do Estado, sendo, também, uma tarefa dos cidadãos.

Para já, o Decreto-Lei 142/2008, que abriu as portas, pela simplifi cação de procedimentos, à criação de áreas protegidas por iniciativa privada mas também municipal, foi já aproveitado por algumas autarquias. Gaia criou a Reserva Natural Local do Estuário do Douro, Caldas da Rainha tem já a Reserva Natural Local do Paul da Tornada e Vila do Conde garantiu finalmente um estatuto de protecção para aquela que, em 1958, foi reconhecida como a primeira área a proteger no país. Trata-se da antiga Reserva Ornitológica do Mindelo, agora denominada Paisagem Protegida Regional do Litoral de Vila do Conde. Também no Grande Porto, Valongo tem a decorrer o processo de criação da Área Protegida das Serras de Santa Justa e Pias, tendo terminado recentemente o período de discussão pública.

Como se paga o projecto?

A Faia Brava é, em Portugal, um laboratório de novas experiências no domínio do financiamento da conservação da natureza. Com cerca de 200 sócios, a Associação Transumância e Natureza (ATN) teve a sorte de estar ligada, na origem, a uma fundação homónima, de origem holandesa, que lhe abre portas para apoios de mecenato vindos do estrangeiro.

Mas, além disso, ensaiou outras estratégias de obtenção de fundos para a aquisição de propriedades no Riba-Côa que, entre os contratos já formalizados e outros alvo de compromissos para futuro, chegam já aos 600 hectares de área protegida. Uma delas passa, por exemplo, pela venda de azeite biológico produzido a partir das oliveiras que pontuam todo o território da reserva, cuja receita é transformada... em terra.

Não chega é para muito. Os últimos 200 hectares, na margem esquerda do Côa, em Cidadelhe, Pinhel, faziam parte da Quinta da Ervideira, para cuja compra a ATN contraiu um empréstimo no BES. Esta entidade bancária acabou por se tornar sponsor da Faia Brava, fazendo um generoso desconto no empréstimo e apoiando ainda, durante dois anos, uma campanha de divulgação da reserva.

Já a EDP, que financiou o Plano de Emergência para a Recuperação de Três Espécies de Aves Rupícolas no Parque Natural do Douro Internacional – no qual a ATN foi chamada a colaborar –, atribuiu em 2009 ao projecto Faia Brava – um lugar para a Biodiversidade (ATN, Universidade de Aveiro e Stichting Transhumance en Natuur, Holanda) verbas do seu fundo para a biodiversidade. O Biofaia, na sua denominação mais curta, vai permitir, por exemplo, melhorar as condições de alojamento (campismo) dos voluntários que todos os anos participam nas acções desenvolvidas na reserva.

Outra forma de chegar a fundos foi a criação de uma Zona de Intervenção Florestal em duas das três freguesias onde se localiza a área protegida. A ATN procura apoios dos fundos comunitários para o mundo rural para as suas actividades agrícolas, até porque estas são essenciais para os objectivos de conservação da biodiversidade que estão na origem da Faia Brava.

A associação, que investiu, no ano passado, 300 mil euros no projecto, tem como objectivo crescer até aos mil sócios até 2015 e atrair, em 2011, mil visitantes. Gente que poderá conhecer, e apoiar, este pioneiro projecto de conservação ainda sem paralelo em Portugal.

Fonte: Publico.pt

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