sexta-feira, 28 de maio de 2010

Em Évora, as primeiras crias de francelho já nasceram

Caminhar em silêncio, preparar insectos e larvas, instalar ninhos, vigiar 24 horas por dia. O único centro português de reprodução em cativeiro do francelho é essencial ao regresso desta ave mundialmente ameaçada à cidade onde já foi mais numerosa do que as andorinhas.

Rita Sanches diz para fecharmos a porta sem fazer barulho. Seguimos-lhe os passos e entramos num corredor com chão de cimento e folhas secas vindas das árvores do Jardim Municipal de Évora a estalar à passagem. Do lado esquerdo, separados por portas verdes, estão os 27 francelhos do Centro de Acolhimento e Recuperação de Animais Silvestres (CARAS), da Liga para a Protecção da Natureza (LPN). Nos seus ninhos já há ovos e crias. São estes animais que vão ajudar a trazer de volta a Évora uma espécie que desapareceu há quase 50 anos.

Os sons dos francelhos misturam-se com o barulho das aves que cruzam os céus da cidade nesta manhã de final de Maio.

Rita Sanches, 30 anos e técnica do centro desde o ano passado, pára junto a uma das portas. Pomo-nos em bicos de pés para espreitar pela rede - as aves estão em período de nidificação e não podem ser perturbadas. Ainda assim é inevitável ter a esperança de ver de perto este falcão, o mais pequeno do país, com uma envergadura entre 63 e 72 centímetros (o maior falcão que existe em Portugal é o falcão- peregrino, com uma envergadura entre 89 e 113 centímetros). Um francelho, também chamado peneireiro-das-torres (Falco naumanni), acaba por pousar na câmara de vigilância, instalada dentro do recinto. E fica ali apenas alguns segundos. A partir de agora, ver as aves implica olhar para o ecrã de um computador que mostra imagens em tempo real a partir das câmaras que vigiam os animais 24 horas por dia.

Na verdade, a observação diária destas imagens faz parte da rotina do centro, mas há mais tarefas a levar a cabo para cuidar dos francelhos: 16 adultos e 11 com um ano de idade. A maioria das aves do CARAS, centro especializado em aves das estepes cerealíferas - como a abetarda, o sisão e o francelho - são irrecuperáveis. "São animais feridos que caíram dos ninhos e que recolhemos durante as acções de vigilância e monitorização das colónias em 2003 e 2004", explica Rita, olhando para o monitor do computador para acompanhar os francelhos. "Algumas das aves têm fracturas nas asas e não conseguem voar."

Rita Sanches serve as refeições três vezes por dia. Os horários - 10h00, 14h00 e 18h00 - estão escritos a marcador num quadro pendurado na parede de uma das salas do centro. Logo ali ao lado está o "supermercado": vários recipientes com ratinhos e larvas de carochas, criados no centro, e uma arca frigorífica com pintos numa caixa, importados de Espanha. Os grilos e gafanhotos são fornecidos por uma empresa da região de Lisboa. "A alimentação é introduzida por tubos para causar o mínimo de perturbação nas aves. Mas ainda assim, todos os dias temos de abrir a porta e entrar para trocar os tabuleiros. Sei que é um transtorno para as aves, mas tem de ser." O cuidado é tanto que os técnicos do centro ainda não sabem quantas crias e ovos existem nos ninhos. "Não podemos fazer uma monitorização rigorosa, correndo o risco de perturbar os ninhos. Ainda é uma surpresa para nós."

Crias de Badajoz

As surpresas com os francelhos do CARAS começaram há cerca de ano e meio, quando alguns dos casais se reproduziram em cativeiro. Ninguém estava à espera. Na primeira época de reprodução houve uma cria e na segunda, cinco. Mas estes são números muito baixos para quem quer restabelecer uma colónia de raiz. Por isso, o centro aproveitou para contactar a Defensa y Estúdio del Médio Ambiente (DEMA), associação espanhola, em Almendralejo, na província de Badajoz, que faz reprodução em cativeiro desta espécie há 18 anos. No âmbito do projecto Conservação e Restabelecimento do Francelho na região de Évora, que começou no início de Agosto de 2009, até meados de Junho deverão chegar vindas de Almendralejo cerca de 50 crias, para reforçar a colónia de Évora.

"Vamos colocar as crias junto à estrutura onde estão os animais do centro [que já não podem ser devolvidos à natureza]. Eles proporcionam um "ambiente de colónia". Aquilo que pretendemos é adaptar estas crias ao local e fazer com que aprendam a caçar."

Rita Sanches vai buscar uma caixa com anilhas para explicar o que acontecerá nos próximos dias. "As aves receberam anilhas CITES [Convenção da ONU para o Comércio Internacional de Espécies Ameaçadas], porque vão passar a fronteira para Portugal. Quando chegarem cá, essas anilhas serão substituídas pela anilha oficial portuguesa e por uma anilha colorida para identificação à distância", explica.

As aves que vierem de Espanha serão libertadas num espaço criado de propósito, por cima do edifício do CARAS. Um escadote de metal possibilita uma subida íngreme até ao "terraço" do edifício. Ali já estão colocadas caixas-ninho de cimento branco, prontas para receber as aves. Lá em baixo, numa casa paredes meias com o centro, uma senhora colhe folhas de couve no seu quintal. Já falta pouco para ser vizinha de francelhos.

"As pessoas em Évora que sabem do projecto de reintrodução do francelho acham piada à ideia", conta Carlos Cruz, biólogo do núcleo da LPN nesta cidade, de binóculos pendurados ao pescoço. Acaba de chegar de uma manhã de observação de aves com escolas da região. "Acho que não vai haver oposição. Mas indiferença, talvez."

Francelhos e andorinhas

Houve tempos em que os céus de Évora chegaram a ter mais francelhos do que andorinhas. É o que dizem os mais velhos, que ainda se lembram de "andar aos ninhos" nas muralhas que envolvem a cidade, conta Carlos Cruz. "Era uma característica da cidade nos anos 40 - as pessoas sabiam onde encontrar os ninhos de francelho. E havia quem comesse as aves e os seus ovos."

Hoje, a colónia mais próxima de Évora tem 42 casais e fica numa propriedade privada, a oito quilómetros do centro da cidade. Foi descoberta em 1995, quando tinha apenas cinco casais. Desde então abriu portas ao esforço de monitorização e manutenção de estruturas de nidificação.

O que é certo é que, no final do século XX, a espécie estava a regredir em todo o país, à medida que desapareciam as suas áreas de alimento nos campos de cereais. A agricultura de sequeiro era substituída pela de regadio e as searas pelo olival e a vinha. Mas não só. Com a requalificação do património histórico foram tapadas as cavidades em muralhas, igrejas e outros edifícios, usadas como locais de nidificação. Nos anos 90, muitas das colónias de peneireiro no Alentejo tinham praticamente desaparecido.

Mas a pouco e pouco, o território do francelho está a espalhar-se pelas planícies do Alentejo. Dos 150 casais que existiam no país na década de 90 passámos para 450 em 2006. De momento, 80 por cento da população nacional concentra-se em Castro Verde. A de Évora está a caminho de ser reestabelecida - tem garantias de acesso a campos de caça (de insectos, claro) a cerca de três quilómetros em linha recta do centro histórico. Mais do que uma conquista, este é o regresso da espécie a locais que foi obrigada a abandonar.

Para o ano, o CARAS vai introduzir novidades para duplicar o número de posturas. Para isso vai ser usada uma incubadora (para eclodir os ovos) e uma nascedora (onde ficam as crias nos primeiros dois dias). "Ainda estamos a estabilizar a incubadora e a nascedora", explica Rita, com um "mira ovos" na mão. Este instrumento, que faz lembrar um pequeno telescópio com luz, serve para conseguir ver o crescimento do embrião.

O projecto de dois anos, explicam Carlos Cruz e Rita Sanches, orçado em 250 mil euros - financiado em 60 por cento pelo programa InAlentejo, do Quadro de Referência Estratégico Nacional (QREN) -, tem o apoio da Câmara Municipal de Évora, da Rede Ferroviária de Alta Velocidade (Rave), de uma farmácia daquela cidade e da Junta da Extremadura.

Mas o projecto pode estar "ferido", diz o biólogo. "Para fazer a diferença, é preciso manter a reprodução pelo menos durante quatro anos. O que levanta um problema. Teremos de procurar formas de prolongar o projecto por mais dois anos."

Enquanto isso, Rita Sanches vai continuar a dormir com o telemóvel ligado e a olhar pelos francelhos, 24 horas por dia. Até poderem voar com as andorinhas.

Fonte: Publico.pt

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