Cerca de 20 por cento da superfície do país são áreas protegidas. Mas, sem ser no papel, quem as protege de verdade? Alexandre e António, vigilantes da natureza, entre pastores e veados, contam como se cuida dos 74 mil hectares do Parque Natural de Montesinho. Em mais um dia no “escritório”.
A carrinha branca dos vigilantes do Parque Natural de Montesinho entra aos solavancos na aldeia de Vilarinho, praticamente deserta na manhã de Inverno. António Vilela vai ao volante. Alexandre Ferreira segue ao lado e consulta a folha das missões que têm para o dia. Vivem nesta região transmontana há mais de 40 anos; são vigilantes da natureza há 23.
O pastor Jaime Maçaira, de 62 anos, surge de uma esquina na rua principal e António Vilela pára a carrinha. É mesmo com ele que os dois vigilantes querem falar no primeiro dia de uma nova missão no parque: procurar vestígios de lince-ibérico, o felino mais ameaçado do planeta.
“Ainda bem que o encontrámos”, cumprimenta Alexandre, fardado de verde, com um aperto de mão. “ Hoje viemos com uma missão específica. Disseram-nos que andavam para aqui uns animais que poderiam ser linces, do tipo gato grande. Viu alguma coisa?”, perguntou António, com os olhos franzidos por causa da luz do Sol. “Não sendo uns esquilozitos... não, não tenho visto. Ando por aí todos os dias mas nada me chamou a atenção.” Na mão esquerda segura uns óculos de ver ao perto e uma agenda de contactos castanha. A mulher espreita à varanda do primeiro andar da casa do pastor, entre a roupa estendida na corda a secar, para ver o que se passa. Vivem em Vilarinho, aldeia com 400 habitantes, dentro do parque natural que, segundo o último Censo à população, tinha 7600 habitantes; em 1960 chegou a ter mais de 20 mil. “Hoje há poucos rebanhos. É um emprego que não é para todos, preferem ir trabalhar para a cidade. Eu fiquei por cá”, explica.
António e Alexandre, dois dos seis vigilantes da natureza de Montesinho, também quiseram ficar. António, 45 anos, cresceu na aldeia de Mofreita, a poucos quilómetros de Vilarinho, e hoje vive em Bragança. Alexandre, 47 anos, nasceu e ainda vive na aldeia de Gimonde. Ambas as povoações estão dentro dos mais de 74 mil hectares do Parque Natural, nos concelhos de Bragança e Vinhais.
“Não se pode controlar tudo numa área tão grande”, admite António Vilela. “Mas ainda não sentimos a falta de vigilantes como em outras áreas protegidas.” Ali não muito longe, o Parque Natural do Douro Internacional está há mais de um ano sem vigilantes, à espera de um concurso nacional para a abertura de cinco vagas. Existem no país cerca de 120 vigilantes.
”Não saímos para o terreno para gastar gasóleo”
As coisas têm mudado nos últimos tempos, com uma gestão de recursos mais rigorosa. “As nossas saídas estão marcadas em escalas mensais, associadas a missões, com objectivos e resultados esperados. E cada vigilante apresenta um relatório semanal”, explica Alexandre. “Acho que assim faz mais sentido. Não é só irmos para o terreno gastar gasóleo.”
Em Montesinho, os seis vigilantes distribuem-se em missões de vigilância e sensibilização, fiscalização, apoio técnico a projectos do parque e vistoria de prejuízos de lobo. Os vigilantes percorrem as estradas e trilhos da área protegida para vigiar o corte de carvalhos, incêndios florestais e construções mas também para fiscalizar a pesca, a caça e a prática de desportos da natureza e raides todo-o-terreno. São também os vigilantes quem entrega os cães de gado transmontano aos pastores – no âmbito de um projecto para evitar ataques de lobo aos rebanhos -, que monitorizam alcateias de lobo-ibérico e participam nos censos do veado e gato-bravo, que removem laços e armadilhas nas serras e encaminham aves feridas para o Hospital de Veterinária de Vila Real. “Temos de preservar o que há de bom no parque”, disse Alexandre.
Durante este ano, o Parque Natural tem uma missão especial: cartografar e identificar locais com indícios do lince-ibérico, depois de terem chegado relatos à sede da área protegida, em Bragança. “Temos a suspeita da ocorrência de lince em Montesinho. Várias pessoas, em sítios diferentes, descreveram o animal tal e qual. Mas de concreto não temos nada”, explica António, já de novo ao volante da carrinha que avança devagar pelas ruas de Vilarinho. “Vamos falar com as populações e fazer trajectos à procura de indícios em zonas com nenhuma intervenção humana e perto dos locais onde as pessoas dizem ter visto lince.”
Depois de Vilarinho, os vigilantes seguem para os trilhos de terra batida das serras de Montesinho e Coroa, com poças de água, buracos e restos de neve.
Uma vez no coração da serra, os vigilantes param para procurar vestígios de lince. Em vez disso encontram pegadas de veado, corço, javali e gineta e excrementos de lobo. De cócoras a avaliar estas marcas, o telemóvel de Alexandre toca. É um telefonema da sede a dar conta da denúncia de um possível ataque de lobo. Segundo explica o vigilante, o pastor tem 48 horas para comunicar o ataque ao parque e este tem cinco dias para fazer a vistoria. “No local fazemos o reconhecimento do terreno e dos vestígios na área em volta dos sinais do ataque. Observamos o animal que foi morto e os sinais do ataque ou como a pessoa pensa que foi; 80 por cento não sabe. Depois o relatório é analisado por um técnico do parque e é dada a decisão ao proprietário”. Se ficar provado que o ataque foi mesmo de lobo, o parque paga pelas ovelhas mortas.
No entanto, não é o lobo que causa mais prejuízos, mas sim o veado e o javali, contam os vigilantes, já na carrinha a serpentear as estradas estreitas da serra. “ As pessoas estão pelos cabelos” porque os veados destroem castanheiros e os campos cultivados com centeio, diz António que, em 23 anos de vigilante, só viu lobos três vezes. Do lado direito da estrada, um campo tem uma vedação com calças de ganga e camisas penduradas, estratégia para afugentar os animais. “A quem o solicitar, o parque fornece redes eléctricas para os veados não passarem”, conta Alexandre. Este vigilante sabe do que fala. “Também tenho algumas terras com castanheiros e tive de as vedar por causa dos veados. Os problemas das pessoas são os nossos.” Talvez por isso, os vigilantes tenham “mais sensibilidade para certos assuntos e costumes”, opina António.
Um vigilante da natureza não pode ter medo
À medida que o dia avança, as estradas passam de aldeia em aldeia, por entre castanheiros, carvalhos e amieiros. António e Alexandre acenam a todos por quantos passam. E todos lhe devolvem a saudação. Além de conhecerem o território melhor que ninguém – asseguram que nunca se perderam em Montesinho – conhecem “quase toda a gente”. “Aqui moram os meus pais”, informa António ao passar por uma povoação. “Esta é a aldeia da minha mulher”, diz Alexandre, uns quilómetros adiante.
“As pessoas têm que viver aqui. Por isso, a nossa prioridade é a sensibilização, tentar esclarecer as coisas que se podem ou não fazer. Por vezes há boatos de que o parque não deixa fazer isto e aquilo, ou que andamos a soltar veados. Primeiro clarificamos. Mas quando há reincidentes, temos de passar um auto de notícia”, explica Alexandre. Ambos consideram que se relacionam bem com as populações do parque. “Quando muito, as pessoas ficam chateadas com as leis, não connosco. Sabem que estamos a fazer o nosso trabalho”.
Mas as caras sérias são uma coisa; as ameaças de morte, outra bem diferente. Ambos recordam o que sentiram quando foram ameaçados por um grupo de homens que estava a abrir um caminho onde não podiam. “Ameaçaram-nos que nos iam deitar pela ravina, para o rio. É preciso saber lidar com as pessoas e acalmá-las. E não ter medo de algumas situações. É isso que faz um bom vigilante.”
Já António José Preto gosta das visitas dos vigilantes. Mora em Rio de Onor, considerada a última aldeia comunitária do país e é o presidente da Junta de Freguesia da aldeia onde moram 55 pessoas encostada à fronteira com Espanha. “Aqui o Parque de Montesinho foi sempre bem visto. Mas antigamente os vigilantes passavam cá mais vezes. Hoje já não têm a mesma actividade”, lamenta António José Preto, à porta do pequeno café da Associação Cultural e Recreativa de Rio de Onor, aberto para tentar reunir algum dinheiro para as festas da aldeia. “Dantes, o parque ajudava a recuperar as casas. Hoje já não pode”. E encolhe os ombros. Os tempos não estão fáceis. “A agricultura já não compensa, as pessoas que aqui vivem estão velhas e não têm dinheiro para manter a aldeia como gostaríamos.”
Atrás do balcão do café, o cunhado, Mariano Preto, enche um copinho de vinho tinto que empurra para as mãos de um cliente. “Há dois meses ficámos sem o rebanho comunitário”, conta. “Estamos muito velhos para isso. Agora há três rebanhos com algumas ovelhas. A única coisa comunitária que se vai mantendo são as hortas. Ainda combinamos todos para semear no mesmo dia.”
O vigilante António ouve as queixas. “Gostávamos de ajudar as pessoas das aldeias. Já houve tempos em que nos pediram para irmos a Bragança pagar-lhes as contas da luz e da água. E nós fomos. Agora já não.”
Ainda assim, os vigilantes continuam a ajudar, a pôr as coisas no lugar. António recolhe uma garrafa de cerveja e uma lata de sumo de ananás, vazias, atiradas para a berma da estrada. Uns quilómetros mais à frente, os dois enchem a parte de trás da carrinha com pneus velhos atirados para uma valeta.
Pelo caminho, escolhem locais elevados para observar, de binóculos. “Aquele entulho já estava ali? Temos de anotar para depois virmos cá limpar aquilo”.
“Este é um trabalho compensador”, comenta Alexandre quando a carrinha é estacionada em frente à sede do parque natural, em Bragança, no final de um dia de trabalho. Foram percorridos 142 quilómetros. Só “gostávamos de ser reconhecidos por aquilo que sabemos fazer”.
Helena Geraldes, Público
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