Parece feita de veludo e, só de a ver em fotografi as, apetece tocarlhe para confi rmar se é macia. E as suas cores, um azul e um verde vistosos, são um aviso aos predadores, como se gritasse aos quatro ventos para não a comerem, que é tóxica. O aviso é a sério: a Tambja ceutae é uma lesma-do-mar que acumula uma molécula tóxica, agora descoberta, para defesa própria.
A espécie já é conhecida há mais de 20 anos: com cerca de 2,5 centímetros de comprimento, foi encontrada pela primeira vez em 1988 em Ceuta, daí o nome científi co que lhe atribuíram. Tanto em Ceuta como em Marrocos, Sul de Espanha, Canárias, Cabo Verde, Madeira e Açores, os locais onde entretanto tem sido observada, nunca primou pela abundância.
Mas em Agosto de 2007 as coisas mudaram: numa campanha internacional de estudo das lesmasdo- mar do Atlântico, que incluiu o biólogo português Gonçalo Calado e que passou por locais como as Bermudas ou o Brasil, os cientistas mergulharam numa zona mesmo à mão de semear e deram de caras com ela. Estava colada à ilha do Faial, a pouca profundidade.
“Encontrámos muitos exemplares dentro do Porto da Horta. Apanhámos algumas dezenas, entre meio metro e dois metros de profundidade. Foi fantástico”, conta Gonçalo Calado, professor da Universidade Lusófona e investigador do Instituto Português de Malacologia.
Por que é que há ali tantas Tambja ceutae? A resposta encontrase no que lhe serve de alimento. Ela come um briozoário, animal que vive agarrado ao fundo por um pé (parece um raminho) e que se alimenta de partículas que fi ltram da água. Ora, esse briozoário, da espécie Bugula dentata, existe em grande quantidade nas paredes do Porto da Horta. “E ela cresce e multiplica-se lá. Facilmente se localizam centenas de exemplares.”
Nessa campanha, também a observaram no mar, entre as ilhas do Faial e do Pico – mas em menor quantidade, porque o briozoário é aí mais escasso.
Os exemplares recolhidos foram congelados e encaminhados para um laboratório em Itália, para uma série de estudos. “Só agora foi possível obtê-la em quantidade sufi ciente para os estudos químicos”, explica Gonçalo Calado.
Guerra contra o cancro
Os especialistas de lesmas-do-mar (ou nudibrânquios, como lhes chamam) sabem que este grupo de animais foi desenvolvendo a capacidade de fabrico ou de acumulação de substâncias químicas que afastam, ou até matam, os predadores. Não têm concha, o que à partida é uma desvantagem, mas arranjaram outros meios de protecção – avançaram para a guerra química. E a coloração chamativa do corpo, associada às armas químicas que desenvolveram, funciona como um aviso aos potenciais predadores.
Cores vivas costumam ser sinónimo de lesmas tóxicas, mas também as há imitadoras: embora sejam comestíveis pelos predadores, protegem-se atrás da cópia das cores vistosas de outras espécies, essas sim indigestas.
Para os seres humanos, as armas químicas das lesmas-do-mar podem revelar-se valiosas. Vários estudos têm demonstrado que são detentoras de moléculas raras na natureza, que podem ter também interesse farmacêutico. Por exemplo, a empresa PharmaMar, em Madrid, tem estado a testar moléculas oriundas de lesmas-domar contra o cancro. A ideia não é apanhá-las até à exaustão para extrair as suas moléculas; antes é inspirar-se nessas moléculas para as fabricar em laboratório.
Os resultados dos estudos químicos da Tambja ceutae foram apresentados na revista científica Bioorganic & Medicinal Chemistry Letters, num artigo publicado em Fevereiro e que o Instituto Português de Malacologia divulgou este mês em comunicado de imprensa: a equipa isolou uma nova molécula e ela apresenta propriedades antitumorais.
A nova molécula chama-se tambjamina K. Como se depreende pela letra, é a 11.ª molécula desse grupo, que recebeu este nome porque as tambjaminas foram isoladas pela primeira vez em lesmas-do-mar do género Tambja (de uma espécie diferente da estudada agora). As tambjaminas também estão presentes em bactérias e noutros invertebrados marinhos, como os briozoários.
Aliás, a Tambja ceutae deve adquirir a molécula através da comida. “Foi detectada em pequenas quantidades no briozoário. Muito provavelmente, é o briozoário que a produz e a lesma-do-mar, ao comê-lo, guarda a molécula para a sua própria defesa”, diz Gonçalo Calado, um dos autores do artigo científi co.
Os testes, ainda muito preliminares, revelaram que a tambjamina K possui actividade contra células humanas cancerosas do cólon, do útero e do cérebro, por exemplo. Dependendo da concentração, a molécula exibiu uma actividade tóxica notável tanto em células tumorais como em células não tumorais de mamíferos, concluiu a equipa no artigo, acrescentando que a tambjamina K impediu a proliferação de todas as linhas celulares testadas.
Uma patente em vista? “A molécula é promissora, mas ainda não está em fase de ser patenteada. Ainda está longe de uma patente”, responde Gonçalo Calado. Antes de mais, é preciso encontrar grupos científi cos que se interessem pela molécula, nomeadamente em empresas farmacêuticas, e que avancem com uma bateria de testes mais específi cos. Mas desta história pode tirar-se uma lição: “O mar como fonte de substâncias naturais para uso humano ainda nos traz muitas surpresas, mesmo quando olhamos para espécies relativamente comuns e em áreas muito humanizadas, como é o caso do Porto da Horta”, sublinha o biólogo. “Quem diria que no Porto da Horta existia uma espécie com uma molécula nova, que é promissora em termos de algum tipo de tratamento?”
Partilhar os benefícios
Esta lesma-do-mar pode também ser ilustrativa de um debate em curso entre os 193 países que ratifi caram a Convenção da Diversidade Biológica das Nações Unidas, em vigor deste 1993. Além da conservação e do uso sustentável da biodiversidade, esta convenção defende a partilha equitativa dos benefícios comerciais resultantes da utilização de recursos genéticos.
Os países têm estado a preparar o rascunho de um protocolo, que vão discutir em Outubro, em Nagóia, no Japão: o objectivo é chegar-se a um acordo vinculativo sobre o acesso e a partilha dos benefícios de recursos genéticos. Como devem ser partilhados os benefícios do desenvolvimento de uma molécula (cujo fabrico é comandado por genes, em última análise)? Só a empresa que investiu deve ter direito a eles? Ou também devem ser partilhados pelas populações locais onde essa molécula foi encontrada? E ainda pela humanidade?
A discussão promete aquecer e, enquanto não soubermos o que resultará da conferência de Nagóia, desvende-se se o aspecto da Tambja ceutae é como parece, fofo e quase almofadado. Pois não é. “Tem um muco à volta. É viscosa.”
Fonte: Publico.pt
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