O desafio conservacionista começou na tarde de 26 de Outubro, quando Azahar, fêmea com cinco anos, chegou do Zoobotânico de Jerez de la Frontera e inaugurou os cercados daquele centro, uma das peças do Plano de Acção para a Conservação do Lince-Ibérico em Portugal (2008-2012). Até 1 de Dezembro, chegaram os restantes 15 linces, de forma faseada.
"Estes meses correram bem e todos os linces se adaptaram rapidamente à situação", contou Rodrigo Serra, director do centro. "No espaço de 15 dias a um mês, os animais já encaravam os tratadores como aliados". Hoje, passados mais de seis meses da chegada de Azahar, os 16 linces "apresentam todo o espectro de comportamentos naturais, a julgar pela forma como usam os cercados", acrescentou.
Nada mais seria de esperar para o ano de arranque em Silves do que uma boa adaptação dos animais. Acontece que o felino das barbas e dos pêlos em forma de pincel na ponta das orelhas surpreendeu a equipa do centro. Da primeira tentativa de reprodução em Silves e dos quatro casais escolhidos - Azahar e Drago, Erica e Enebro, Era e Calabacín e Espiga e Daman - nasceram duas crias, a 4 de Abril. "Esta foi a terceira vez que Azahar engravidou, mas, pela primeira vez, conseguiu levar a gravidez até ao fim", sublinhou Rodrigo Serra. "Ficámos muito entusiasmados. Foi a primeira reprodução comprovada em Portugal nos últimos 30 anos".
Mas Abril não trouxe só alegrias. Nesse mesmo mês, a equipa de técnicos de Silves viu-se obrigada a saber como ultrapassar a perda destes animais. A primeira cria morreu a 11 de Abril e a segunda a 18 de Abril.
De acordo com os resultados das autópsias realizadas no Centro de Análises e Diagnóstico de Málaga, em Espanha - centro que realiza as autópsias dos linces que morrem em cativeiro -, as crias estavam bem formadas e com as proporções correctas, mas "nasceram com problemas congénitos incompatíveis com a vida", explicou Serra. "Por aquilo que percebíamos através das câmaras de vigilância, as crias estavam a mamar. Mas, quando morreram, tinham um terço do peso que seria normal". A primeira cria morreu com 117 gramas, quando devia ter 382 gramas; a segunda tinha 144 gramas, em vez de algo entre 560 e 520 gramas.
Apesar de apresentar um "comportamento exemplar", a progenitora Azahar, com 8,5 quilos, nunca duplicou a quantidade de alimento ingerida diariamente, como seria normal. "Ao contrário do que acontece com os outros animais, a Azahar tinha comida disponível durante todo o dia, e de diferentes variedades. Mas enquanto esteve grávida comeu sempre o mesmo, o que não era suficiente".
Crias não tinham hipótese
Devido ao nanismo e ao mau desenvolvimento fetal congénito - uma das crias apresentava má formação da tiróide, responsável pela hormona do crescimento -, as crias estavam mais fragilizadas, menos imunes e mais atreitas a complicações. À segunda cria foi diagnosticada uma ruptura de intestino. Mas, para ambas, a gota de água terá sido uma infecção bacteriana aguda. "Nenhuma tinha hipóteses de sobrevivência, nem mesmo se fosse alimentada à mão", disse Rodrigo Serra.
Na verdade, os dois primeiros meses de vida das crias são cruciais. No ano passado, 40 por cento das crias que nasceram em cativeiro em Espanha morreram nesse espaço de tempo. De 28 animais, sobreviveram apenas 17. Os técnicos do centro estão agora a estudar a compatibilidade genética dos progenitores.
"Foi uma surpresa muito grande", comentou Rodrigo Serra, referindo que tudo foi feito pelas crias. "Assim que nos apercebemos de problemas, entrámos imediatamente em contacto com o centro de El Acebuche, em Doñana (Espanha)". Segundo o responsável, ainda que a intervenção dos técnicos nos cercados seja reduzida ao essencial, para não perturbar os animais, quando se aperceberam de problemas com a segunda cria, tomaram a opção de agir. "Decidimos intervir com a segunda cria quando nos apercebemos que esta estava a perder actividade. Entrámos no cercado e retirámo-la. Mas acabou por morrer passadas duas horas. Não havia nada a fazer".
"O impacto na equipa técnica e nos funcionários foi grande", admite. "Mas conseguimos refrear o desespero esforçando-nos por lembrar as coisas boas que já conseguimos alcançar".
Hoje, a "equipa continua coesa", a trabalhar nos detalhes e já está a preparar a próxima época de cria. "Estamos lançadíssimos para a época de reprodução de 2010/2011", garantiu.
Programa Vallia
Projecto quer populações do Alentejo como "guardiões"
Quatro das oito áreas prioritárias de intervenção para a espécie, definidas no Plano de Acção para a Conservação do Lince-Ibérico, estão no Alentejo: Nisa, São Mamede, Moura/Barrancos e Guadiana. As populações que vivem nestas zonas de habitat potencial para a espécie, serão o garante da sobrevivência do felino. Para "conquistá-las", começou a 1 de Setembro do ano passado o projecto Vallia, co-financiado pelo programa InAlentejo. Ao lado do Instituto de Conservação da Natureza e da Biodiversidade (ICNB) estão a Associação de Defesa do Património de Mértola, a Associação Nacional de Proprietários e Produtores de Caça, a Liga para a Protecção da Natureza (LPN) e o apoio da Confederação dos Agricultores de Portugal (CAP). Durante 24 meses, a ideia será promover a intervenção no terreno e chegar às populações, explicou Lurdes Carvalho, coordenadora do plano de acção para a conservação do lince em Portugal.
"Um dos aspectos mais positivos do programa é falar com as pessoas, ouvir as suas dúvidas e preocupações", comentou Tito Rosa, presidente do Instituto de Conservação da Natureza e da Biodiversidade.
No âmbito do programa Vallia, foram realizados workshops para "debater experiências" e na semana passada 50 pessoas - entre agricultores, caçadores e técnicos - visitaram duas propriedades agrícolas em Espanha onde existem linces. António Rosado, gestor da Associação de Jovens Agricultores de Moura (AJAM), também foi. "Vimos excrementos e pegadas de lince, vimos câmaras fotográficas para captar imagens do animal, vimos veados e outras espécies. Vimos o que isto [Moura/Barrancos] poderia ser e gostámos", contou.António Rosado salienta que, "sem os agricultores, todos os esforços serão efémeros ou nem chegarão a funcionar", porque "os projectos de conservação duram apenas alguns anos e depois acabam". "Durante muito tempo, não houve ligação entre as populações e os conservacionistas. Agora estamos com um espírito construtivo, porque consideramos que estão a ser feitos esforços para dar a entender que, sem a participação activa dos agricultores, isto não funciona". Tito Rosa sublinha a importância de "mobilizar as pessoas", especialmente agricultores e caçadores. "São eles os melhores intérpretes daquilo que tem de ser feito, do que tem de ser corrigido. O diálogo só institucional não chega". O presidente do ICNB lembra que o lince pode ser um aliado para os caçadores, actuando como controlo de predadores intermédios como a raposa ou o saca-rabos. António Rosado concorda. "Estima-se que um lince pode tirar do cenário quatro raposas. É tudo compatível, o que é preciso é agir com inteligência".
E ainda há muito por fazer. "Teoricamente, já há esforços; mas, na prática, não. Ainda não se começou a fazer algo forte", alertou António Rosado. Segundo este agricultor, a maioria das populações locais ainda não está convencida de que quem quer conservar o lince vem por bem. "Ainda há muitos a dizer: "Não tragam para cá os linces"", lamenta.
Foco foi eleito a "supervedeta" do centro
A maioria dos 16 animais com os quais se tenta criar uma população viável em Portugal tem menos de dois anos de idade e nasceu em cativeiro. Azahar é a mais velha (nasceu em 2004 na serra Morena, em Andújar), seguida de Calabacín (2006) e de Drago (2007). Sete animais nasceram em 2008 - Eucalipto, Ébano, Enebro, Espiga, Era, Erica e Éon - e cinco no ano passado - Fado, Fresco, Fresa, Fauno e Foco.
Apenas Azahar, Calabacín, Daman e Era nasceram em liberdade, na serra Morena, em Espanha; os outros já nasceram em cativeiro, fruto de um programa espanhol que arrancou em 2003. As primeiras crias - Brezo, Brisa e Brezina - nasceram a 28 de Março de 2005, em Doñana. Brezina acabou por morrer numa luta entre irmãos, habitual na espécie.
A maioria dos animais (doze) veio do centro de reprodução de La Olivilla; três de El Acebuche e um do Zoológico Jerez de la Frontera, no âmbito de um protocolo de cedência assinado a 28 de Julho de 2009 em Penamacor entre o então ministro do Ambiente, Francisco Nunes Correia, e a sua homóloga espanhola, Elena Espinosa.
Astrid Vargas, responsável pelo programa espanhol de criação em cativeiro, explicou em Outubro do ano passado, quando a Azahar chegou a Silves, que os animais cedidos a Portugal foram escolhidos por critérios genéticos. "Mas também é muito importante a compatibilidade química entre eles", notou na altura. Segundo o programa espanhol de reprodução do lince-ibérico, "as transferências ocorrem todos os anos para poder estabelecer os casais reprodutores mais adequados do ponto de vista genético". Além disso, "ajuda o processo de "emancipação" dos jovens nascidos nesse ano".
Mas não há um lince-ibérico igual ao outro no Centro Nacional de Reprodução em Cativeiro para o Lince-Ibérico (CNRLI). "Cada um tem a sua personalidade. E se nem todos se dão bem, há muitas interacções positivas", diz Rodrigo Serra. O contacto entre os cinco tratadores e os linces são limitados ao essencial, nomeadamente à alimentação e a melhorias dos cercados. Mas há cinco câmaras por cercado a vigiar os linces 24 horas por dia, sob o olhar atento dos técnicos.
"O Fado e o Ébano dão-se bem", explicou Rodrigo Serra, que deu conta das "picardias" entre Drago e Calabacín. "O Eucalipto provoca o Foco e, em jeito de brincadeira, come o seu coelho mesmo junto à rede do cercado do Foco, para o desafiar". A Espiga é curiosa e talvez a mais comunicativa com os tratadores. Daman e Erica são os mais "selvagens". Mas a "super-vedeta" do centro de Silves é o Foco, com as suas brincadeiras. "Parece uma criança", conta Rodrigo Serra. E quando um tratador, que nunca é o mesmo, entra nos cercados, os linces vocalizam por comida e sentem que aquela é uma presença "benéfica para eles", conta o responsável.
De momento, os linces de Silves encontram-se de boa saúde. O único percalço foi a detecção de insuficiência renal crónica num dos animais. "A Espiga já está tratada e deixou de ter sintomas", garantiu o responsável. Actualmente, foram testados onze animais e prevê-se para breve fazer o mesmo aos restantes cinco.
O objectivo do programa ibérico de reprodução em cativeiro é conservar 85 por cento da variabilidade genética existente na natureza, durante um período de 30 anos. Para tal será preciso um núcleo de 60 linces reprodutores.
A fase seguinte será fazer uma reintrodução gradual dos animais em determinadas áreas consideradas prioritárias. Até ao final de 2012, Portugal deverá implementar um programa detalhado para a reintrodução dos animais na natureza, compromisso assumido na assinatura do protocolo de cedência dos linces.
Fonte: Publico.pt
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