quarta-feira, 5 de setembro de 2012

A barragem que venceu lobos e uma paisagem protegida

    Depois de vários chumbos nos Estudos de Impacte Ambiental, a Barragem de Veiguinhas, Bragança, teve o "sim" do Governo. E há quem fale em atentado ambiental

Olhando para o vale encaixado de Veiguinhas, onde em breve poderá ser construída a nova barragem para abastecimento de água a Bragança, dificilmente se adivinha o elevado valor ambiental que preserva.

"A importância natural de um ecossistema nem sempre se vê", alerta José Castro, professor no Instituto Politécnico de Bragança, doutorado em Ciências da Paisagem. É ele o nosso guia até ao local que, de há 15 anos a esta parte, aparece na imprensa sempre que a falta de água no concelho vem à tona.

Desde 1997 que a Câmara Municipal de Bragança (CMB) tenta construir aqui uma barragem, com a qual pensa resolver todos os problemas de falta de água à população do concelho (na cidade, nunca faltou).

Até março deste ano altura em que o atual secretário de Estado do Ambiente, Pedro Afonso Paulo (com cargos em três empresas ligadas às Águas de Portugal no currículo), deu parecer favorável ao projeto, a história de Veiguinhas chegava a ser monótona, de tão repetitiva.

Houve quatro Estudos de Impacte Ambiental chumbados e outros tantos não chegaram sequer à fase final do processo, por não cumprirem os requisitos. Num daqueles estudos, o de 2005, Veiguinhas mereceu apreciação desfavorável, mas o então secretário de Estado do Ambiente de Durão Barroso, Jorge Moreira da Silva, dava o aval a outra solução apresentada a captação de água na vizinha albufeira do Azibo, em Macedo de Cavaleiros. Com uma decisão que a CMB não seguiu, mas que as vozes que se opõem à construção da barragem não esquecem. Já lá iremos...

Por agora, diga-se que a luz verde do Governo à barragem não pôs um ponto final na polémica. Nas instâncias políticas e judiciais, tudo parece divergir do sossego absoluto que às dez da manhã de uma sexta-feira se respira em Veiguinhas.

A Quercus interpôs, em junho, uma providência cautelar tentando impedir que as obras avancem, sem antes ser julgada a Ação Judicial com que tenta anular a Declaração de Impacte Ambiental favorável. Entretanto, no fim de julho, o Ministério da Agricultura, Mar, Ambiente e Ordenamento do Território, entregou ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela uma declaração em que alega interesse público na construção da barragem, tentando assim retirar efeito à referida Providência.


COINCIDÊNCIAS... Mas, afinal, o que é que Veiguinhas tem que não se vê? "Neste local, o grande valor é a dimensão do terreno não perturbado.

Torna-se um corredor importantíssimo para o lobo ibérico", explica José Castro, olhando em volta uma natureza praticamente virgem de "pegadas" humanas. Se Veiguinhas avançar, prossegue, o lobo não será a única espécie ameaçada a ver o seu habitat alterado: "A toupeira de água vive sobretudo em rios secundários e terciários, sobre os quais a barragem será construída ", lembra o professor.

O Parque Natural de Montesinho (PNM) estende-se ao longo de 75 mil hectares.

No centro de toda a polémica está precisamente um dos locais mais protegidos de todo o perímetro. O Plano de Ordenamento do Parque classifica-o como "área non aedificandi"; a fauna e os habitats prioritários são protegidos por legislação comunitária e nacional.

João Branco, da Quercus, não entende o que mudou para que o projeto seja agora aprovado: "Os lobos, os veados, as toupeiras de água continuam lá, tal como o resto da fauna e flora protegidas". Para ele e para a Associação Nacional da Conservação da Natureza, que representa, há interesses escondidos. Branco prefere usar a ironia e falar em "coincidências". Refere-se ao facto de o novo empreendimento ir "permitir desviar água do rio Sabor para a barragem de Serra Serrada" e, com isso, "aumentar a produção de energia elétrica " da barragem já existente.

O ambientalista estranha o "discurso de dramatização" do Presidente da CMB: "Se a questão da falta de água é tão urgente porque não realizou a solução (do Azibo) apontada logo em 2005?", deixa no ar.


ESTUDOS INSUFICIENTES? Jorge Nunes, o autarca, defende-se. "O Azibo era uma solução inviável. Implicava um investimento inicial de 30 milhões de euros e grandes gastos energéticos de origem fóssil (por ter de se recorrer a um sistema de bombagem), que fariam subir a faturas de eletricidade. Além de que iria impor condicionantes ao fornecimento de água a Macedo e Mirandela, que já são abastecidas por essa albufeira", diz. Veiguinhas "ficará por 10 milhões de euros". [O EIA, porém, situa a diferença entre as duas opções em apenas 12 por cento].

E quanto à produção de energia elétrica? "O projeto é estritamente dedicado ao abastecimento público de água", afiança o autarca. E desvaloriza os ganhos com Serra Serrada: "Não têm expressão". Fazendo contas de cabeça, estima que no último ano tenham rendido 250 a 300 mil euros aos cofres municipais. Para Veiguinhas ser rentável a esse nível, "ter-se-iam de construir mais condutas", avança.

Já o ex-presidente das Águas de Trás-os-Montes e Alto Douro (ATMAD) que, durante nove anos (a partir de 2000) acompanhou de perto o processo, tem opinião diferente. Alexandre Chaves considera que a nova barragem vai aportar "valores significativos à CMB, com benefício também para a ATMAD".

Em entrevista telefónica à VISÃO, fala no assunto com naturalidade: "Se existe já um sistema montado, por que não aproveitar a água de Veiguinhas para produzir também energia elétrica?", interroga.

O ex-dirigente não tem, porém, dúvidas de que esse é o "grande problema do projeto e dos chumbos". Havendo "necessidade de abastecer água a Bragança, o que fazia confusão ao Instituto de Conservação da Natureza e Biodiversidade (ICNB) era que ao longo do percurso essa água pudesse produzir energia".

Em resposta às questões enviadas pela VISÃO, o ICNB limitou-se a enviar um excerto do Parecer da Comissão de Avaliação (CA) do projeto. Tal como em todas as vezes anteriores, desta, o organismo voltou a opor-se ao projeto. Não subscreveu a Declaração de Impacte Ambiental favorável, por considerar que os estudos realizados mostravam "evidências" quanto à "existência de soluções técnicas viáveis fora da Área Classificada de Montesinho".

Perante estas declarações, o gabinete do secretário de Estado do Ambiente, escreve à VISÃO que "foram analisadas todas as alternativas à data consideradas tecnicamente viáveis". Sobre outras alternativas eventuais, refere os "custos" e a "não garantia de armazenamento em situação de estio prolongado".

Nas conclusões do tal parecer, a Comissão de Avaliação é inequívoca. A concretização do projeto escreve terá "impactes negativos, significativos e irreversíveis nos sistemas ecológicos do território afetado ". E a visão do ICNB é corroborada: "Poderão existir outras alternativas viáveis para o reforço de abastecimento de água a Bragança e que carecem de uma análise estratégica e integrada dos recursos hídricos disponíveis na região."


UM ENTERRO SEM GENTE... Já aposentado, António Morais, um técnico superior do ICNB, aceitou comentar o caso à VISÃO. Tal como a Quercus, também ele acha "estranho" o aval político dado ao projeto. Quando lhe perguntamos se vê ligação entre o caso Veiguinhas e a perda de força do Instituto onde trabalhou (que a tutela anexou recentemente às Florestas), diz "parecer óbvia a necessária articulação entre os vários setores e entidades competentes que intervêm no território, para que não se permita a subversão de objetivos e interesses por parte de alguns". Para Alexandre Chaves, o Instituto "morreu sem ninguém ir ao enterro". O ex-presidente das ATMAD acha que "tem de haver um organismo que faça a pedagogia dos valores da natureza com as comunidades, mas nunca contra elas". "Estranho", julga, não é a aprovação de Veiguinhas, mas sim "os chumbos constantes". Na ótica do ex-dirigente, o verdadeiro "valor ambiental" é aquele que Veiguinhas permitirá "um sistema que preserva as águas subterrâneas para a agricultura e cria um sistema de origem sustentada que garante a quantidade e a qualidade das águas às comunidades".

Mas Luís Filipe Fernandes, geólogo, especializado em Hidrogeologia, que fez o doutoramento sobre o Aquífero de Cova de Lua, discorda. Na fase de consulta pública, o também professor no Instituto Politécnico de Bragança contestou o projeto por achar que a barragem não deveria ser construída sem que antes fossem feitos estudos para averiguar as potencialidades de Cova da Lua. O aquífero seria integrado no sistema hidroelétrico já existente como alternativa complementar.

A alternativa que o engenheiro civil Moreno Ferreira sugeriu era outra. Ainda no ativo, apesar dos 90 anos de idade, o engenheiro com escritório em Lisboa, mas origens em Bragança, sugeriu o alteamento do paredão da barragem de Serra Serrada em seis metros: "Permitiria duplicar 100% a reserva de água e resolvia todos os problemas", assegura. "Implica custos menores e menor tempo de execução".

A única desvantagem é que "não garantiria a mesma produção de energia elétrica".

A solução, garante o engenheiro, foi testada por si com sucesso, num caso semelhante na Serra da Estrela onde, há mais de 30 anos, aumentou a capacidade de armazenamento da barragem de Cova de Viriato.

O Governo não aceita esta hipótese por provocar "problemas em termos de estanquidade e estabilidade" e porque "ficava dependente de afluências próprias".

O engenheiro Moreno Ferreira refuta terminantemente as duas afirmações: "São falsas e impróprias de engenheiros", considera.

O tom de voz é de revolta, pelo que diz ser um "atentado contra um parque único na Europa, privando as gerações futuras de conhecer um valioso património ambiental e ecológico".

Fonte: Visão/ Joana Fillol

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