"Quando a terra
deixa de fumegar e as cinzas dos incêndios de verão amansam, o debate acerca
das florestas normalmente deixa de estar presente na sociedade portuguesa. Não
foi assim desta vez"
Quando a terra
deixa de fumegar e as cinzas dos incêndios de verão amansam, o debate acerca
das florestas normalmente deixa de estar presente na sociedade portuguesa. Não
foi assim desta vez. O ministério da Agricultura anunciou uma "reforma
florestal" e a brigada do eucalipto cedo pôs mãos à obra. No fim, pouca
gente concorda com aquilo a que Capoulas Santos chama de "reforma sem
equívocos". Resta saber se os pressupostos da reforma estão equivocados,
se os críticos criticam equivocadamente ou se a própria reforma é um equívoco,.
A minha resposta
às três perguntas é sim: a reforma é um equívoco, os pressupostos da mesma
estão equivocados e os críticos criticam equivocadamente, quer por
má-interpretação, quer por má-fé.
Recebi
recentemente documentos acerca de um caso que é uma espécie de corolário da
razão pela qual a ideia de reforma foi posta em cima da mesa: a total
desregulação garantida pela lei dos eucaliptos, DL 109/2013. Nas Caldas da
Rainha, uma pequena proprietária de um pomar de meio hectare recebeu em 2015 a
notícia de que no terreno contíguo ao seu, também uma pequena área de 0,85ha,
seriam plantados 0,64 hectares de eucalipto. O projecto, abaixo de uma área de
2 hectares, recebeu deferimento tácito. Deu entrada no ICNF – Instituto da
Conservação da Natureza e Florestas, e tinha como objectivo arborizar para
reconverter e rentabilizar o terreno a partir da produção de material lenhoso
para celulose. A pequena área confinava com espaços agrícolas, zonas de matos e
florestas, e continha sobreiros, que segundo o projecto (e a lei), seriam
preservados. Os eucaliptos seriam plantados num compasso de 3m por 1,7m.
Segundo uma lei, não revogada, de 1927 (DL 13658, de 20 de Maio), as plantações
de eucaliptos têm de ter uma faixa de 20 m de distância de terras cultivadas.
A pequena
proprietária viu os eucaliptos serem plantados a 1m do seu pomar e viu os
sobreiros serem cortados para lenha. Hoje, os eucaliptos plantados num compasso
de 1,5m x 2,2m, têm 3m de altura e em breve cobrirão o sol das macieiras do seu
pomar. Entretanto, e porque pretende continuar a ter um pomar, apresentou
queixa à GNR (Serviço de Protecção da Natureza e do Ambiente), se seguida ao
ICNF, chegando ao Ministro da Agricultura, que remeteu para o Secretário de
Estado das Florestas que, por sua vez, a remeteu de volta ao ICNF. Inspecção no
terreno? Não existiu. Acção para repor a legalidade? Nada.
A lei dos
eucaliptos (DL 96/2013) de Assunção Cristas e Francisco Gomes da Silva funciona
perfeitamente. Ela não requeria apenas a liberalização da plantação de
eucaliptos nas pequenas propriedades (áreas inferiores a 2 hectares) como a
total incapacidade das autoridades, nomeadamente o ICNF, para fiscalizar o que
quer que fosse (inclusivamente para accionar um mecanismo dessa lei, o artigo
13º, de reposição da situação anterior). O pomar desta pequena proprietária é
só um de milhares por todo o país afectado por esta lei de encomenda. Acrescem
estufas, outras áreas agrícolas, áreas protegidas, áreas florestais públicas e
privadas.
O primeiro
equívoco é o nome: "reforma" foi a expressão que Capoulas Santos
inventou para evitar dizer que faz parte do programa de governo revogar a lei dos
eucaliptos. O Partido Socialista nunca foi um oponente à eucaliptização do país
e hoje continua a não sê-lo. Mas o acordo de governo com o Partido Ecologista
"Os Verdes" impôs a revogação. A mais que tímida formulação
recentemente apresentada pelo ministro, de que se basearia na Estratégia
Florestal Nacional do governo anterior para congelar a área de eucaliptal nos
valores de 2010 (812 mil hectares de eucaliptal) demonstra bem quão pouco
convicta é a posição do Partido Socialista. A "reforma florestal" de
Capoulas Santos, que inclui outros pontos como a criação de um sistema de banco
de terras para as propriedades abandonadas, um regime de apoios fiscais à
criação de empresas e cooperativas para gerir áreas florestais, nomeadamente as
abandonadas, e a atribuição aos municípios de competências para autorizar
acções de arborização e rearborização, é um desvio importante do programa e um
importante equívoco no que diz respeito aos principais problemas da floresta:
abandono, monocultura, incêndio, desflorestação. Perante a impotência do
Estado, reforça-se a impotência.
Naturalmente os
defensores do eucalipto, desde a indústria à academia, passando por antigos
governantes com responsabilidades no sector, têm uma posição crítica em relação
à ideia (por tímida que seja) do governo congelar a área de eucaliptal. Nunca
seria congelada nos 812 mil hectares de 2010, já que esse valor está
ultrapassado há muito e provavelmente a área de eucaliptal já estará próxima
dos 900 mil hectares (apesar da perda de 150 mil hectares de floresta nos
últimos 15 anos em Portugal). Os seus argumentos variam pouco e são os mesmos
há décadas: a área florestal actual é a melhor possível e não seria
possível outra. Os Doutores Pangloss da floresta não concebem uma floresta que
não seja o monopólio das empresas da celulose, o Estado é um mau gestor (sempre
curioso vindo de quem já geriu as áreas florestais a partir do Estado), os
incêndios têm a ver com o abandono mas o abandono não tem nada a ver com o
maior monopólio e com a espécie mais plantada no país. Os fogos não poderiam
ser prevenidos de maneira que prejudicasse o monopólio, por isso que ardam os
eucaliptos e o resto das espécies também. Chega-se a dizer que as florestas
ardem por não serem competitivas, que a floresta não é um bem público, mas uma
questão económica. E a área florestal cai, os incêndios agravam-se e até
os tais magros rendimentos aos produtores caem. Mas vivem na melhor monocultura
possível, porque pensar uma floresta que não seja monocultura e que não seja monopólio
é inadmissível. Outro equívoco: achar que a monocultura de uma espécie é uma
floresta.
Desligada de uma
estratégia de desenvolvimento rural e de defesa do território contra as
alterações climáticas, a floresta de equívocos continuará a ser contenda política
sem conclusão, com áreas florestais cada vez mais pequenas e degradadas. Em
toda a reforma não há nenhuma referência a uma subida marcadíssima de
temperatura e a um decréscimo importante de precipitação. A destruição do
Instituto da Conservação da Natureza e Biodiversidade, fundido com a Autoridade
Florestal Nacional por Assunção Cristas no anterior governo, garantiu que a
conservação da natureza e da biodiversidade nas áreas florestais não é hoje
mais do que uma nota de rodapé colocada no capítulo da "Responsabilidade
Social" das celuloses. O governo português entretanto subsidia a indústria
com milhões de euros para continuar, além do eucaliptização, a despejar
resíduos cuja toxicidade transforma rios como o Tejo em fossas sépticas. A própria
imprensa, como o Jornal de Negócios, organiza cocktails de industriais da pasta
de papel para estes se louvarem a si mesmos e ao seu próprio produto,
assumindo, valha isso, que "a indústria não quer ter floresta".
Há quem descubra
com espanto que a limitação da plantação de eucaliptos é um condicionante aos
lucros da indústria da celulose. Há quem não perceba ou finja não perceber que
a degradação nas áreas florestais associada à plantação do eucalipto só dá
dinheiro ao monopólio celulose, e que só por isso é que era incentivada, e
mesmo hoje continua, com obstáculos menores.
À "reforma
florestal" falta a coragem política para assumir a regressão da
monocultura e do monopólio do eucalipto e da celulose, que se impôs no país não
por condições naturais, mas por investimentos estratégicos na política e na
formação, na empresarialização do ensino, que produz mais operários acríticos
do que observadores sérios. O lobby surfa por entre ciclos políticos, oscilando
entre a ignorância e o favor. Milhares de almoços, jantares, reuniões,
formações, projectos-piloto e investimentos garantem a conformação a uma
ideologia de degradação ambiental como algo inultrapassável e até, em alguns
casos, desejável.
A área florestal
nacional precisa de acabar com equívocos. Perde-se-ão todas as oportunidades
sempre que se achar que é possível defender a floresta sem cortar no monopólio
dos eucaliptos e nos lucros da Navigator Company e do Grupo Altri.
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