quinta-feira, 8 de abril de 2010

Vamos limpar as ideias - O lixo e o preconceito levaram uma grande limpeza

O lixo e o preconceito levaram uma grande limpeza. Há que aproveitar a campanha 'Vamos Limpar Portugal' para levar a varredela mais longe...


100 mil voluntários recolheram 70 mil toneladas de lixo em 13 mil lixeiras

Decorreu há 15 dias uma operação, cujo significado ultrapassa muito o episódico do seu acontecimento. A campanha 'Vamos Limpar Portugal' (VLP) limpou de facto muito, mas sobretudo expôs muito mais. Afinal há mesmo imenso para limpar ainda.

Ficou à vista neste dia, abreviado pelo mau tempo, a quantidade assustadora de lixos acumulados por bermas e matas, afundados nas ribeiras, enterrados nas florestas, atirados a eito para os barrancos e arribas... - sintoma de um país desesperado à procura de um "fora" para onde deitar as sobras e os dejectos da sua vida. O país que vive entrincheirado nas suas vidas privadas, rodeado dessa "terra de ninguém" que para ele são os outros que não conhece nem quer conhecer.

No dia VLP ficou, enfim, à vista que o verdadeiro culpado de todo este lixo é, afinal, o próprio país. Não foi o "eixo do mal" que espalhou lixo por toda a parte, nem o Estado, nem os inimigos, nem os invejosos do costume. Portugal está sujo, profundamente sujo, pelos próprios portugueses. O dia VLP foi um verdadeiro festival de populismo às avessas. Directa e indirectamente, todos somos responsáveis pela situação. E, finalmente, a solução desencadeou-se a partir de dentro do problema: a sociedade civil manifestou uma verdadeira e sincera vontade de limpar. De se limpar... energicamente.

Cem mil pessoas participaram, apesar da chuva. E não foi nenhuma ONG, nenhuma coligação de partidos, nenhuma seita, nenhum clube de futebol. Foram 100 mil cidadãos a trabalhar num sábado, a terem a revelação do lixo e a expô-la a todos os outros. Fez-se o saldo aflitivo da condição ambiental das nossas tão celebradas belezas paisagísticas. Portugal afinal é um extenso tapete para debaixo do qual se varrem todas as porcarias.

Nada ficará como dantes depois desta data. Este dia não foi um dia; ele inaugurou uma consciência pública do desleixo profundo a que votamos os nossos valores naturais e paisagísticos, sem contar com a própria saúde. A desatenção a que em Portugal está votado o espaço público colectivo dá também para avaliar o estado da democracia que vivemos.

Mesmo que as autoridades tenham um papel crucial e valha sempre a pena chamar a inspecção do ambiente (IGAOT) e o serviço especial de ambiente da GNR (SEPNA), nada supre a acção individual e colectiva. Ninguém está dispensado.

Duas semanas depois, as ironias são inevitáveis. Com que então estava resolvido o problema das lixeiras em Portugal? Trinta e tal anos de políticas ambientais revelam que o país é todo ele uma sucata difusa - só pelo networking, com o apoio da Universidade de Aveiro, localizaram-se 13 mil focos. Não basta fechar e selar as mais óbvias lixeiras urbanas; vai ser preciso ir buscar o lixo aos fundos onde ele foi metido e escondido - como foram os mergulhadores às ribeiras, ou os rafters às escarpas... ou os que andaram a vasculhar os solos. E descobriu-se de tudo: muitos frigoríficos e outros electrodomésticos; peças e carcaças de automóveis; pneus; muito - mesmo muito - entulho de obras. Encontrou-se também lixo doméstico, sacos de plástico cheios de lixos a despontar por debaixo de tapetes de folhas secas em frondosas matas... Até algum lixo tóxico foi encontrado a "temperar" as belas águas que, mais abaixo, nas fontes, parecem puras e cristalinas...

O dia VLP teve um tamanho enorme para trás e para diante. Para trás, porque lembrou os milhares de avisos que há tantos anos algumas pessoas têm feito, para serem acusadas de desmancha-prazeres das maravilhas turísticas de Portugal. Para a frente, porque a responsabilidade de todos agora é manifesta.

Estas experiências, mesmo que de um só dia, são duradouras: os 100 mil que limparam, mais os milhões que viram o resultado dessa limpeza pelas televisões... ficaram decerto mais atentos e terão outro cuidado para que se não suje mais.

O espaço público, ou melhor, o espaço cívico da democracia coincidiu com o território. É um feito. Agora só a incúria da Administração Pública pode destruí-lo, ao não lhe dar continuidade e ânimo. Quanto mais não seja por gratidão, já que a iniciativa poupou ao Estado dezenas de milhões de euros e anos de trabalho, e a ministra do Ambiente, que é especialista no assunto, sabe-o bem.

Por fim, note-se o modo como as redes sociais funcionaram para estimular a vida cívica portuguesa, que, após décadas, primeiro, de proibição e repressão e, depois, de desencorajamento, afinal quer viver e manifestar-se.

A cidadania em Portugal não é um caso desesperado de desânimo a 'justificar' tentações autoritárias. Antes pelo contrário, o potencial de entusiasmo e de mobilização é enorme. Não o aproveitar será uma estupidez culposa.

O programa de limpeza e descontaminação do país, palmo a palmo, é urgente. Por todas as razões e mais algumas.

Fonte: Expresso -  Luísa Schmidt (http://www.expresso.pt/)

0 comentários:

Enviar um comentário