domingo, 15 de agosto de 2010

Dispositivo de combate a fogos melhorou, mas ainda tem muito para evoluir


Especialistas dizem que ainda é preciso olear a coordenação no teatro de operações, melhorar a logística dos incêndios e a formação dos comandantes.

O dispositivo de combate aos incêndios florestais foi reforçado depois dos anos trágicos de 2003 e 2005, em que arderam, respectivamente, 425 e 338 mil hectares. Hoje há mais meios aéreos e uma outra estratégia de os utilizar, que privilegia a primeira intervenção. Introduziu-se a filosofia do comando único e criou-se a Força Especial de Bombeiros e o Grupo de Intervenção Protecção e Socorro da GNR, ambos numa lógica de profissionalização do combate. Trouxe-se conhecimento para o dispositivo, com a criação do Grupo de Análise e Uso do fogo. Mas até este ano, muitos comentavam que o dispositivo não tinha sido sujeito a um verdadeiro teste. As condições meteorológicas adversas ditaram que tal acontecesse este ano. E, apesar de todos concordarem que ainda há muito a fazer, há quem arrisque dizer que o dispositivo é hoje mais eficaz.

O director executivo da Afocelca - um agrupamento complementar criado em 2002 por várias empresas de pasta e papel para a prevenção e combate aos incêndios florestais dentro das suas áreas -, Orlando Ormazabal, não tem dúvidas de que o dispositivo de combate está "bastante melhor". Ao aplaudir a adopção de um comando único, o engenheiro lembra que "em 2003 e 2005 havia demasiada anarquia". Mas não ignora que ainda existem problemas no teatro de operações, especialmente durante os grandes incêndios que envolvem centenas de pessoas. "Ainda é preciso melhorar a coordenação", considera Ormazabal. Joaquim Sande Silva, da Liga para a Protecção da Natureza e professor da Escola Superior Agrária de Coimbra, também refere este problema. "Chegam-nos relatos de conflitos, nomeadamente entre comandantes, do terreno", refere. Ao admitir que houve melhorias, após a adopção do comando único, atira: "Mas as coisas ainda não estão bem oleadas".

Para o presidente da Liga dos Bombeiros Portugueses, Duarte Caldeira, este ano está a ser o verdadeiro teste para o dispositivo. Reconhecendo igualmente que houve melhorias, insiste que ainda há muito a fazer. "Os grupos de bombeiros vêm de todo o lado e estão até às cinco ou às seis da tarde à espera que alguém lhes forneça uma refeição", lamenta Caldeira, ao realçar que é preciso melhorar a logística dos incêndios. Fala também na dificuldade em accionar máquinas de rasto, para o teatro de operações, capazes de fazer faixas de contenção que impeçam a progressão das chamas. António Salgueiro, engenheiro florestal e coordenador do Grupo de Análise e Uso do Fogo, queixa-se do mesmo. "Há planos municipais de emergência ocos. Queremos contactar as pessoas responsáveis pela activação das máquinas de rasto, mas não há ninguém disponível", reclama.

Para o investigador José Miguel Cardoso Pereira, um dos responsáveis pela proposta técnica do Plano Nacional de Defesa da Floresta contra Incêndios, ainda não se conseguiu mudar o paradigma de combate dos fogos centrado na água. "Houve alguma progressão, mas ainda temos muito para evoluir", sustenta. Também ele fala das dificuldades de coordenação e da necessidade de um melhor suporte logístico aos incêndios. "Parece-me que se mantém arrepiantemente actual a proposta que fizemos", remata. Em causa estava a criação de uma estrutura permanente, de carácter empresarial, com competência não apenas no combate, mas também na prevenção e na recuperação das áreas ardidas. Totalmente profissionalizada.

Sem entrar na polémica, o director executivo da Afocelca acredita que a formação dos comandantes é um dos pontos a melhorar. Fala ainda na detecção que no ano passado via como um ponto fraco do dispositivo, depois de a GNR ter contratado desempregados, sem qualquer experiência, para os postos de vigia. "Este ano, contudo, já foi recrutado outro tipo de pessoas e isso nota-se", afirma Ormazabal.

Mas no que o director executivo da Afocelca insiste é no número exagerado de ignições que se verificam no país, que, no dia 8 de Agosto, ultrapassaram o limite das 500. "Em qualquer sistema medianamente organizado, é impossível atender a todas estas ocorrências. O vosso sistema responde bem com 200 a 250 ignições por dia, mas não com 450 a 500, ainda por cima concentradas em quatro distritos [Porto, Braga, Aveiro e Viana]", alerta. Por isso, sublinha, é preciso sensibilizar as pessoas e aumentar a fiscalização. Os comportamentos têm que se alterar.

Pior fase de incêndios já vai a meio

A Monitorização Aérea Florestal, um programa que permite que um conjunto de aeronaves civis faça vigilância, detecção e acompanhamento aos incêndios, arranca hoje, a meio da Fase Charlie, a pior época dos fogos. O presidente da Federação Portuguesa de Aeronáutica, José Martinho, que há anos assina o protocolo de colaboração com a Autoridade Florestal Nacional (AFN), justifica o atraso, em parte, com as dificuldades orçamentais do organismo. "Por outro lado, sempre que se muda alguém nas estruturas, temos de os convencer das vantagens deste sistema", lamenta José Martinho. Contactado pelo PÚBLICO, o Ministério da Agricultura, que tutela a AFN, diz que só foi possível assinar o protocolo na sexta-feira, porque só nessa altura o Instituto Nacional de Aviação Civil deu o parecer técnico necessário para as aeronaves operarem.

Estas avionetas permitem, em tempo real, recolher dados para se avaliar o potencial de propagação de um incêndio e identificar os acessos e infra-estruturas existentes. "As pessoas que estão no terreno não vêem 200 metros à sua frente, assim o comandante consegue ter uma visão do conjunto", explica Martinho. E acrescenta: "Imaginem a utilidade no caso dos reacendimentos. Do ar, conseguimos ver qualquer fuminho". As informações são transferidas para um site, onde se pode ver a localização exacta do fogo e os seus limites. O protocolo tem o valor de 50 mil euros, que visa compensar os gastos de combustível das aeronaves. "Mas a participação dos pilotos é voluntária", sublinha José Martinho. Nos últimos três anos, realizaram-se 718 missões, sendo reportadas 1051 ocorrências e acompanhados 576 incêndios.

Grandes fogos regressaram à floresta, mas sem a dimensão dos anos mais críticos

Até ontem, o maior incêndio do ano tinha devorado 4.881 hectares em Vilarinho da Furna, às portas do Parque Nacional da Peneda-Gerês.

Depois de três anos de ausência, os grandes incêndios regressaram em força. Mesmo assim, de acordo com os números publicados pelo EFFIS, Sistema Europeu de Informação de Fogos Florestais, nenhum dos grandes fogos deste Verão destruiu mais de cinco mil hectares, um número muito distante do recorde atingido em 2003 com o incêndio de Nisa, que registou mais de 41 mil hectares de área ardida. As condições meteorológicas severas e os ventos são factores apontados para explicar a dificuldade de extinguir os incêndios. Por outro lado, a existência de múltiplas edificações na serra condiciona a actuação dos bombeiros que se concentram na protecção dos bens e não da floresta.

Este ano, segundo dados de ontem avançados pelo EFFIS, que, através de vários satélites, regista fogos com áreas ardidas superiores a 20 hectares em toda a Europa e Norte de África, o maior incêndio do ano foi o de Vilarinho da Furna, em Braga, que começou a 7 de Agosto à porta do Parque Nacional da Peneda-Gerês e acabou por lá entrar. São estimados 4.881 hectares ardidos, dados ainda provisórios, que terão que ser verificados no terreno. Isto porque o satélite muitas vezes contabiliza como queimadas zonas que estão dentro do perímetro do incêndio, mas que não chegaram a arder.

Em segundo lugar está o fogo de São Pedro do Sul (ver reportagem), que começou a 6 de Agosto e foi dado como dominado cinco dias depois. Mas na passada quinta-feira ainda houve um reacendimento que assustou a população e irritou o vice-presidente da autarquia, que se insurgiu contra o facto de os militares estarem parados, a ver o fogo passar.

Bastante significativos foram os vários fogos que estiveram durante dias arder na serra da Estrela, tendo destruído parte do parque natural. O EFFIS contabiliza três grandes fogos nesta zona, o maior dos quais em Girabolhos, com uma área ardida de 4.383 hectares. Regista ainda outros dois, um em São Romão e outro em Vila Franca da Serra, respectivamente, com 3.839 hectares e 3.676 hectares destruídos.

O presidente da Liga dos Bombeiros Portugueses, Duarte Caldeira, insiste que este ano o quadro é muito diferente do vivido em 2003 e 2005, os dois piores anos de sempre a nível dos incêndios florestais. "Temos que nos recordar que, em 2003, de 24 de Julho a 10 de Agosto, havia 14 distritos com incêndios, contrariamente ao que acontece agora, em que os fogos se concentram em meia dúzia de distritos", afirma. E sublinha: "Em 2003, só entre 27 de Julho e 14 de Agosto, arderam 218 mil hectares, ou seja, 51 por cento do total da área ardida do ano". Apenas dez fogos foram responsáveis pela destruição de 211 mil hectares.

António Salgueiro, coordenador do Grupo de Análise e Uso do Fogo, tem estado no teatro dos piores incêndios deste ano. E diz que os ventos, permanentemente a mudar de direcção, têm sido um dos principais problemas. Além disso, salienta a secura da vegetação, "muito disponível" para arder. "Qualquer saltinho agarra logo", adianta, referindo-se às projecções que criam focos secundários e dificultam o combate. A falta de ordenamento, com casas e edifícios no meio da floresta, é outro problema. "A estratégia de combate concentra-se na protecção das pessoas e dos bens, debilitando o combate na floresta", realça.

Valor económico poupa Pinhal Interior

O Pinhal Interior deixou de ser das regiões mais castigadas pelos incêndios florestais, passando o "cargo" ao Noroeste. Especialistas arriscam dizer que tal se deve ao maior reconhecimento do potencial económico pelas populações que dependem da floresta.

Paulo Fernandes, investigador do Departamento de Ciências Florestais e Arquitectura Paisagista da Universidade de Trás-os-Montes e Alto-Douro, descarta que o Pinhal Interior esteja a ser ajudado por uma meteorologia mais clemente. Prova disso é o número das ignições. Apesar de o Pinhal Interior ter tido "quase o dobro do risco de ignição do que o Noroeste", a verdade é que "tem havido muito menos ignições".

O investigador tirou as conclusões depois de analisar o número de ignições por cada 10 km quadrados a partir de Julho. Os distritos do Pinhal Interior, Castelo Branco e Santarém, tiveram apenas duas ignições cada. "Uma diferença enorme em relação a Aveiro, com 16 ignições", por exemplo. O Porto registou 79 ignições.

Helena Freitas, directora do Jardim Botânico da Universidade de Coimbra, também identificou este cenário pouco habitual no mapa dos incêndios, lembrando os anos de 2003 e 2004, "um ciclo profundamente chocante e desastroso para a Região Centro".

"Ao contrário do que acontece no Norte, os concelhos do Pinhal Interior têm hoje a percepção do valor económico da floresta e criaram mecanismos de prevenção". A Região Centro tornou-se "a mais apetecível" para novos valores florestais, como por exemplo a biomassa, ao passo que o Norte enfrenta uma situação de "abandono [da floresta] gravíssima". Por exemplo, disse, a Lousã e Oliveira do Hospital têm zonas de intervenção florestal "bem instaladas e activas".Paulo Fernandes considera também que no Pinhal Interior existe uma "maior ligação das populações à floresta, porque vivem dela".

Para Joaquim Sande Silva, investigador em fogos florestais na Escola Superior Agrária de Coimbra e no Centro de Ecologia Aplicada Prof. Baeta Neves, a diferença estará no "trabalho de prevenção para evitar o cenário de 2003". "À partida, descartaria a justificação de que já ardeu tudo o que havia para arder. A vegetação recupera tão depressa que aquilo que ardeu em 2003 está pronto para arder agora".

Fonte: Publico.pt

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