No imaginário colectivo as cegonhas são brancas e trazem bebés. Mas aqui são pretas. E precisam que alguém cuide dos seus próprios bebés. Mergulhamos na garganta escarpada do Tejo Internacional, com biólogos da Quercus que querem salvar juvenis assustados. As histórias das cegonhas já não são como eram.
Por esta altura do ano os ninhos de cegonha-branca apoderam-se da paisagem de Castelo Branco. E não é só da paisagem campestre nas imediações da cidade que falamos. As cegonhas-brancas também se instalaram nos telhados e chaminés dos prédios altos e nos postes de electricidade e telefone no centro da cidade. O escritório da associação ambientalista Quercus em Castelo Branco não tem mãos a medir para os telefonemas que recebe de moradores que ligam, preocupados: ora porque lhes caiu uma cria de cegonha assustada no quintal, ora porque foi atropelado um adulto que precisa de cuidados. As cegonhas-brancas fazem parte da vida da cidade.
Nesta altura é hora dos juvenis largarem o ninho. A bem ou a mal. E preocupam a população: "Ligou-nos agora uma pessoa a dizer que achou mais uma. O que dizemos a quem telefona é que, se não está prostrada e ainda se põe de pé, a deixem ficar. Só depois de 48 horas com estes sintomas é que se deve agir." Samuel Infante fala de cegonhas como os pediatras falam dos bebés. "Às vezes são os próprios pais que os deixam de alimentar para os juvenis saírem do ninho. É altura de começarem a voar. Temos só de estar atentos a sinais de desidratação."
O engenheiro de recursos naturais que já não se lembra há quantos anos está com a Quercus é um dos responsáveis pelo Centro de Estudo e Recuperação de Animais Selvagens de Castelo Branco, pertencente à associação. Com ele trabalha a veterinária Beatriz Azorín. Já lá estão instaladas 11 cegonhas, para além de corujas e abutres, entre outras espécies. O centro tem uma taxa de sucesso na recuperação de 56 por cento. "Os telefones não param. A cegonha procurou sempre esta proximidade com o homem."
Mas, ao contrário da sociável e abundante cegonha-branca, cada vez mais vista de norte a sul, há uma outra história menos feliz, a da cegonha-preta (Ciconia nigra), que preocupa a Quercus. A associação tem em curso um programa de anilhagem e controlo veterinário desta espécie, que conta apenas com 102 a 112 casais em todo o país, de acordo com os dados do último censo, o de 2004.
Álbum de família
É no Tejo Internacional que reside a maior parte destes indivíduos, que são ligeiramente mais pequenos do que os seus congéneres brancos (a cegonha-branca tem uma envergadura de 1,95 a 2,15 metros e a preta mede entre 1,85 e 2 metros). Ali residem 20 a 22 casais.
"É uma espécie com estatuto de vulnerável. Já esteve em perigo, mas sofreu uma tendência positiva no lado espanhol", diz Carlos Pacheco, o biólogo da Quercus que conduz, desde 1995, o programa de anilhagem e controlo veterinário da espécie, que é responsável já por mais de 500 anilhagens e que este ano conta com o mecenato da Delta. "O exemplar mais velho anilhado tinha 14 anos. Temos toda a sua história de vida. Por onde andou, quantas crias teve... Construímos o seu álbum de família", explica o biólogo.
Um trabalho dispendioso, falta de financiamento e poucos biólogos preparados para a investigação nesta área tornam o estudo da cegonha-preta muito complexo e difícil, diz Carlos Pacheco. "Pode ser duro aceitar, mas as espécies têm o seu preço em termos de conservação, que pode ser compensador ou não. Este projecto não seria exequível sem mecenato."
O jipe da Quercus parte do centro de Castelo Branco e serpenteia rumo ao Tejo Internacional, ao porto de Malpica. É lá o ponto de partida para uma das últimas anilhagens de juvenis de cegonha-preta. O biólogo e a veterinária da associação vão visitar um dos últimos ninhos que ainda não viram na região. "Já anilhámos 17 juvenis", diz Beatriz Azorín.
"A Quercus começou a comprar terrenos em Malpica na década de 1980 para evitar a catástrofe que hoje se vê por estas bandas - a substituição dos sobreiros por eucaliptos, algo que agora se está a tentar reduzir", explica Carlos Pacheco, apontando para as pequenas árvores, com cerca de metro e meio, espalhadas pelo caminho: "Está a ver estes sobreiros? Já têm dez anos e continuam deste tamanho."
Para ajudar à conservação da cegonha-preta, a associação pretende agora usar o projecto financiado pelo mecenato para criar uma charca em Monte Barata, Monforte da Beira, e recuperar o habitat das margens do Tejo, acrescenta Samuel Infante.
O barco pneumático que leva os especialistas até ao ninho, algures no meio do rio, onde só os abutres e grifos observam a paisagem, já tinha sido posto de parte, quando Carlos Pacheco decidiu recuperá-lo. Tem vários remendos, mas é seguro, garante o biólogo, enquanto bombeia o ar que enche a embarcação.
A primeira paragem, já rio acima, entre escarpas, no meio de um silêncio quebrado pelo motor, é perto de uma formação rochosa que alberga nada mais nada menos do que 46 ninhos de grifos que pairam sobre as visitas, curiosos. Carlos já os visitou todos. "As primeiras saídas para anilhagem que fazemos no ano são dedicadas aos grifos. Depois vêm as águias-de-Bonelli, depois as águias-reais. E a seguir os abutres-do-Egipto e as cegonhas-pretas."
Ainda se seguem cerca de dez minutos de caminho até chegar ao tão esperado último ninho de cegonha-preta que a equipa vai visitar, já no Aravil, afluente do Tejo. Fica numa escarpa, mas é acessível facilmente com um salto a partir do barco. O casal escolheu uma plataforma na rocha para criar o seu bebé.
A abordagem é feita com cuidado e em silêncio. "Podem atirar-se do ninho. Depois dos 40 dias já não os anilhamos, porque ficam mais violentos", explica o biólogo que se orgulha de nunca ter tido acidentes com crias. "Por vezes temos de ir a ninhos em locais de muito difícil acesso. Podemos ter de descer 20 a 40 metros de escarpa, em rappel." Uma vez uma cria caiu do ninho. "Mas não morreu. Conseguimos apanhá-la." Tudo acabou bem.
Um exame rápido
O juvenil espreita as visitas, de cabeça espetada, com a rala plumagem ainda esbranquiçada no ar. Está curioso. "Este tem 33 a 35 dias. É a partir dos 50 dias de vida, mais ou menos, que começam a ter plumagem definitiva e, aos 65, ganham a plumagem para voar."
Biólogo e veterinária aproximam-se do ninho e o bebé passa de curioso a assustado. Emite barulhos estridentes e só sossega quando Carlos lhe coloca uma toalha turca por cima. "Se não nos estiverem a ver acalmam bastante."
A operação é rápida. Beatriz Azorín recolhe uma amostra de sangue, faz uma zaragatoa da garganta para despistar gripe aviária e recolhe uma amostra de plumagem para apurar o sexo do juvenil. "E apanhei também caca fresca. É a primeira que apanho", diz com uma alegria de cientista na voz.
Acabada a operação, a toalha é retirada e o bebé fica encolhido, à espera que os intrusos desapareçam. "Este ninho só tinha uma cria, mas podem ter até cinco", diz Carlos Pacheco.
Por vezes, diz o biólogo, morrem ninhadas inteiras sem que se conheça a causa aparente: "Pode ser doença, intoxicação.... Até agora são casos pontuais, mas, se se tornarem mais frequentes, podem ter impacto na preservação da espécie", acrescenta. A perturbação por acção humana nos locais de nidificação e a escassez de alimento (as cegonhas-pretas alimentam-se de peixe e pequenos anfíbios) são os maiores entraves ao sucesso da conservação. Sem paz e comida não se reproduzem.
A partir de hoje aquele bebé só vai receber mais uma visita da equipa da Quercus: "Queremos só certificar-nos de que vai sobreviver até conseguir voar."
Com a anilhagem de juvenis de cegonha-preta o projecto da Quercus procura respostas a perguntas que ajudarão a conhecer melhor a espécie e vão contribuir para a conservação: onde passam o Inverno? Que longevidade alcançam? Como se dispersam geograficamente? Que distância percorrem entre o sítio onde nasceram e o de nidificação?
"Os machos aqui dispersam-se menos, mas nunca voltam ao mesmo lugar. Afastam-se pelo menos 5 a 15 quilómetros. Mas temos casos em que os indivíduos percorreram 400 quilómetros. Identificámos um que nidificou em França, junto ao Luxemburgo."
E o trabalho que tem acompanhado desde 1995 já revelou algumas novidades sobre a espécie: "Havia a dúvida se os indivíduos ibéricos eram diferentes dos do resto da Europa, se eram uma subespécie. Já provámos que não." E descobriram também que a área de influência da espécie é maior do que se pensava: "Vai do Senegal, Mali, Camarões, até ao Sul de Espanha."
Fonte: Publico.pt
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