A esmagadora maioria das áreas marinhas protegidas é costeira. O alto mar ainda é um mundo por descobrir, povoado por aves, baleias, golfinhos e corais que (quase) nunca vemos. Dezenas de cientistas estão a estudar o que existe lá longe, para que a conservação da natureza não fique junto à praia. Andamos a proteger o nosso mar?
Nuno Barros pára o carro na terra batida ao lado do farol do cabo Raso, em Cascais. São 7h30, pouco depois do nascer do Sol, e o mar que se atira contra as rochas tem cor de céu nublado. Dezenas de aves rasam as ondas em bandos ou isoladas. Umas batem as asas em movimentos rápidos e outras deixam-se ir, de asas bem esticadas. Nuno sai do carro e pendura os binóculos ao pescoço. Pedro Geraldes tira da mala de trás o tripé e o telescópio, que monta de frente para o Atlântico. Os dois ornitólogos da Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves (Spea) estão à procura de uma das aves mais ameaçadas da Europa, a pardela-balear (Puffinus mauretanicus).
Esta ave marinha, da qual só restam entre 6000 a 10.000 animais reprodutores, tem as suas colónias nas ilhas Baleares, mas o mar português é um dos principais lugares onde passa o Inverno, a alimentar-se e a fazer a muda das penas. "Queremos perceber de que forma as aves utilizam estas águas", diz Pedro Geraldes, que trabalha na Spea há 12 anos, a espreitar o mar pelo telescópio.
Nas primeiras horas do dia, as aves marinhas aproximam-se mais da costa para se alimentar e Pedro e Nuno aproveitam para as conhecer melhor. Hoje, têm pela frente três horas de observação, no último dia de um projecto de monitorização que começou a 15 de Agosto, no âmbito do Future of the Atlantic Marine Environment (FAME), do qual Portugal é parceiro, ao lado do Reino Unido, Irlanda, França e Espanha. "Três vezes por semana vimos ao cabo Raso à procura da pardela-balear", acrescenta Nuno Barros, na Spea há dois anos.
A pequena ave, de um castanho escuro, passa a vida no mar e só vem a terra uma vez por ano para pôr um único ovo. Durante a noite. E apenas nas ilhas Baleares. Não está, por isso, entre as aves mais conhecidas, como as gaivotas-de-patas-amarelas.
Ainda há muito para descobrir sobre a pardela-balear e o mesmo se pode dizer em relação à biodiversidade marinha em geral. Até agora, a inacessibilidade do alto mar tem condicionado a conservação da natureza, encostada à costa. "Na zona económica exclusiva (ZEE) do Continente, a esmagadora maioria das áreas marinhas protegidas está aquém das seis milhas [menos de 10 quilómetros] da costa", diz Mário Silva, director do Departamento de Conservação e Gestão da Biodiversidade do Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF).
A Arrábida e as Berlengas foram as primeiras áreas marinhas protegidas designadas na nossa costa, em 1998. Hoje, "parte significativa das águas costeiras tem protecção", graças às áreas protegidas terrestres que têm uma extensão marinha, como os parques naturais do Litoral Norte, do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina e a Reserva Natural das Lagoas de Santo André e da Sancha.
Mas se avançarmos mar adentro, é raro encontrar uma área protegida marinha. "Na nossa ZEE, a única área marinha verdadeiramente offshore já designada (em 2010) é o Monte Submarino Josephine, entre a Madeira e o Continente." Portugal submeteu esta área à rede de Áreas Marinhas Protegidas da OSPAR (Convenção para a Protecção do Meio Marinho do Atlântico Nordeste), uma vez que apenas tem jurisdição sobre o fundo do mar e não sobre a coluna de água.
"A história da conservação da natureza no meio marinho foi-se fazendo de forma avulsa", sem pensar muito em criar uma rede integrada de áreas protegidas, considera Henrique Cabral, director do Centro de Oceanografia da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. "Em muitos casos, as áreas marinhas protegidas são acrescentos às áreas terrestres que já tinham algum estatuto de conservação."
O biólogo salienta que Portugal tem uma área relativamente grande coberta no que diz respeito às zonas de baixa profundidade, normalmente até aos 30 metros de profundidade, e que essa zona "é muito importante do ponto de vista da conservação". Mas se considerarmos "todo o ambiente marítimo português, de facto, a área protegida é muito reduzida".
O arquipélago dos Açores é responsável pelos maiores avanços na criação de áreas marinhas protegidas em Portugal. Segundo Frederico Cardigos, director regional dos Assuntos do Mar, os Açores têm nove parques naturais, um em cada ilha, que ao todo incluem 44 zonas definidas como Áreas Marinhas Protegidas, até às 12 milhas de costa. Além destas, existem 11 que estão mais longe, fora do mar territorial, e que desde 2011 se juntaram para criar o Parque Marinho dos Açores. "Queremos preservar as riquezas que existem e garantir que as zonas muito importantes para a biodiversidade sejam mantidas", comenta. Nos Açores, até às 200 milhas, estão protegidos o banco D. João de Castro, os campos hidrotermais Menez Gwen e Lucky Strike, o monte submarino Sedlo, bem como os habitats e espécies oceânicas do Corvo e do Faial.
Frederico Cardigos acredita que o sucesso dos Açores se deve ao facto de o arquipélago sofrer menos pressões que o Continente e, sobretudo, por haver um "sentimento incutido desde há muito de que a natureza tem de ser respeitada".
Rede Natura 2000 ao mar
Portugal está a trabalhar na criação de áreas marinhas protegidas em alto mar, mas está atrasado. Entre 2008 e 2012, os Estados-membros da União Europeia foram chamados a definir a sua rede de áreas marinhas protegidas e planos de gestão para cada uma. Na verdade, este é um dos grandes objectivos do movimento conservacionista europeu. Isto é, levar para o mar o maior instrumento de conservação, a Rede Natura 2000, o conjunto de espaços com os animais, plantas e habitats que melhor representam o Velho Continente.
À semelhança do que aconteceu em meio terrestre, Portugal precisa propor um conjunto de áreas importantes para as aves (Zonas de Protecção Especial, ZPE, no âmbito da Directiva europeia Aves, de 1979) e para outros animais e habitats (Sítios de Importância Comunitária, SIC, no âmbito da Directiva Habitats, de 1992). Nas águas costeiras existem actualmente sete SIC - como Sintra-Cascais, o Estuário do Tejo e Peniche/Santa Cruz - e oito ZPE - como as ilhas Berlengas, cabo Espichel, ria de Aveiro e Costa Sudoeste.
Agora, "Portugal está empenhado num processo de alargamento da Rede Natura à zona offshore, para propor novas áreas para lá das 12 milhas", diz Mário Silva, do ICNF. "Este é um processo que está muito avançado nos Açores, mas no Continente não, apesar de estarmos a fazer o nosso caminho. Deveria ter havido um grande avanço até este ano, mas designar áreas marinhas é mais difícil do que designar áreas em terra", nota.
À partida, a conservação da natureza marinha esbarra numa série de obstáculos. Para começar, "não vivemos permanentemente no mar", explica Henrique Cabral, do Centro de Oceanografia. "O acesso ao oceano tem mais barreiras, o que se reflecte na dificuldade em estudar o mar, na concretização das medidas de conservação e sua monitorização e ainda na fiscalização", acrescenta.
Depois, a biodiversidade marinha é muito particular e mais variada: "Muitos organismos não têm equivalente em meio terrestre e o nosso conhecimento sobre eles ainda é reduzido. Em muitas situações nem sequer sabemos que temos valores patrimoniais com uma importância elevadíssima."
E como é a biodiversidade marinha no mar português? "É muito interessante. Como estamos numa zona de interface entre províncias biogeográficas distintas temos espécies que são do Norte da Europa (de uma zona temperada fria) e espécies mais do Sul, com características subtropicais", diz o biólogo. Na fotografia ao que existe no mar português é possível ver centenas de espécies de peixes, algas, seres planctónicos, medusas e alforrecas, bivalves, polvos e lulas, caranguejos, tartarugas marinhas, baleias, golfinhos e tantas outras espécies.
À descoberta
Neste momento, o esforço de criação de novas áreas marinhas protegidas, no âmbito da extensão da Rede Natura 2000, concentra-se em saber o que existe no oceano. Dezenas de especialistas fazem o levantamento da biodiversidade marinha - no mar, no ar e em terra, junto à costa.
De 6 a 9 de Setembro deste ano, mais de 4000 cetáceos, 8600 aves marinhas, 100 tubarões e cinco tartarugas marinhas foram avistadas por uma equipa de investigadores a bordo do Partenavia P68, um pequeno avião que fez um censo aéreo até às 50 milhas náuticas no âmbito do projecto MarPro - Conservation of Marine Protected Species in Mainland Portugal (2011-2015). "Portugal está obrigado a definir as áreas de Rede Natura 2000 no mar, especialmente para o boto (Phocoena phocoena), o roaz (Tursiops truncatus) e para a pardela-balear", lembra Catarina Eira, investigadora da Universidade de Aveiro e coordenadora do MarPro, projecto financiado pelo fundo europeu LIFE+. "Precisamos de ter uma base de dados fiáveis sobre a distribuição destes animais para, até ao final de 2013, propormos novas áreas marinhas protegidas", acrescenta.
O pequeno avião fez uma média de oito horas de censos por dia, ao longo de 4837 quilómetros em transectos perpendiculares à costa, entre o cabo Finisterra na Galiza e a foz do rio Guadiana. "O mar português é zona de passagem de animais entre o Norte e o Sul do Atlântico e é bastante rico", acrescenta Catarina Eira. Além disso, aqui ocorre na Primavera e início do Verão um fenómeno, conhecido como afloramento. "Acontece quando há mudanças de ventos e de marés e a água de camadas inferiores vem ao de cima, trazendo muitos nutrientes."
Até ao momento, o MarPro - que tem como outros parceiros a Universidade do Minho, a Spea, o Instituto de Investigação das Pescas e do Mar (IPIMAR) e o ICNF - fez um censo oceânico, em Agosto de 2011, e dois censos aéreos (um em 2011 e outro em 2012), além da monitorização dos animais mortos que dão à costa, no Norte do país. Ainda que os dados obtidos no início de Setembro estejam "muito crus", já é possível perceber que o mar português funciona como uma espécie de supermercado gigante para muitos animais em viagem nas migrações. "A função mais importante desta zona será a de local de alimentação para cetáceos e aves marinhas, tão necessária como os locais de reprodução", acrescenta Catarina Eira. Por exemplo, o ganso-patola nidifica no Reino Unido em grandes colónias. No primeiro ano de idade abandona o ninho e vem para as águas portuguesas, onde fica até ter idade de se reproduzir e regressar à colónia. Isso pode levar cinco ou mais anos. "As pessoas ficam espantadas com todas as espécies que ocorrem por cá mas que não são observadas", salienta a investigadora.
Para colmatar a lacuna de informação, as ilhas Berlengas foram passadas a pente fino por dezenas de cientistas, a bordo do navio Creoula, nas duas últimas semanas de Setembro. "Até 30 de Setembro já tinham aparecido 120 novas espécies para as Berlengas", diz Frederico Dias, da Estrutura de Missão para os Assuntos do Mar e responsável pelo projecto Marbis, criado em 2007 "para apoiar a decisão no âmbito da extensão da Rede Natura 2000 ao mar", diz o responsável.
"O que mais temos encontrado são briozoários, organismos invertebrados parecidas com plantas e que formam colónias de animais, onde cada um tem uma função específica e depende dos outros", explica. Depois desta expedição, onde foram feitos mergulhos até aos 35 metros de profundidade, as Berlengas poderão ficar com mais de 800 espécies conhecidas. Tudo o que for encontrado será registado na base de dados do Marbis, plataforma que deverá ficar disponível para o público em geral. "Este projecto tem toda a informação geo-referenciada, com coordenadas e um sistema de informação geográfica, com fotografias e vídeos. Se quisermos pesquisar um quadrado no mapa marinho, podemos ver os registos que existem aí", explica Frederico Dias. Até ao momento, o Marbis tem um total de 30.000 registos de espécies que ocorrem no mar português, depois das expedições às Selvagens em 2010, às Desertas, Porto Santo, Formigas e Santa Maria em 2011.
Zonas importantes para aves
Muito do trabalho já feito para conhecer a natureza marinha diz respeito às aves. Estima-se que cerca de 40 espécies ocorram regularmente no mar português, 15 das quais pelágicas (que vivem no mar e só vão a terra pôr os ovos). "As aves marinhas são o grupo mais ameaçado de aves do mundo e sofrem com os predadores e com algumas artes de pesca", diz Pedro Geraldes, da Spea. "As suas populações têm diminuído muito. É preciso proteger não só as zonas onde nidificam mas também as zonas que utilizam no mar."
De 2005 a 2009 foram realizados censos marinhos, aéreos e junto à costa no âmbito do projecto LIFE Important Bird Areas (IBA) marinhas, coordenado pela Spea. No final, foram seleccionadas as 17 zonas do mar português mais importantes para as aves, por serem corredores que os animais usam durante as migrações, extensão de colónias costeiras ou ainda zonas de alto mar onde elas se concentram regularmente. Onze estão nos Açores, duas na Madeira e quatro no Continente, mais especificamente na ria Formosa (199 quilómetros quadrados de área), Figueira da Foz (1067 quilómetros quadrados), ilhas Berlengas (2073 quilómetros quadrados) e cabo Raso (589 quilómetros quadrados). "As IBA propostas são essenciais para sete aves: cagarra (90% da população mundial está em Portugal, ou seja, mais de 200.000 casais), pardela-balear, roque-de-castro, ganso-patola, gaivota-de-patas-amarelas, gaivota-de-cabeça-preta e chilreta", diz Pedro Geraldes.
Por si só, as IBA não têm qualquer estatuto legal e só ao de leve coincidem com as áreas de Rede Natura 2000 para a zona costeira. A Spea entende que as IBA deveriam ser consideradas zonas de Rede Natura 2000. Até ao momento, o Estado português aprovou uma das quatro IBA propostas para o Continente, a das Berlengas, e apenas em parte, lembra Pedro Geraldes. A Spea enviou uma queixa à Comissão Europeia, lembrando que Portugal ainda não propôs suficientes locais para proteger as aves. Mário Silva, do ICNF, diz que estão neste momento a estudar duas das quatro IBA propostas pela Spea. "Esperamos por informação técnica adicional." Ainda assim, acrescenta, o projecto das IBA marinhas "foi muito útil para darmos um salto qualitativo" no conhecimento da natureza marinha.
Entretanto já são 10h30 no cabo Raso e Nuno Barros e Pedro Geraldes apontam nas folhas os últimos registos das aves. "Uma cagarra para Norte a meia água. Um ganso-patola perto para Sul... Estás a apontar?", pergunta Pedro sem tirar os olhos do telescópio. "Sim, estou a apanhar. Continua", responde Nuno, a rabiscar siglas e traços nas linhas. "Duas cagarras a meia água para Norte. Um ganso-patola adulto para Norte." Ao final das três horas de observação foram avistadas cerca de 30 pardelas-baleares, um número não muito impressionante. Também não encontraram concentrações desta ave marinha. "Hoje vimos cagarras, gansos-patolas, corvos-marinhos-de-crista, garajaus e moleiros. Mas vimos poucas pardelas-baleares", resume Nuno Barros. A maioria das aves observadas nesta manhã está em migração ou a fazer movimentos locais, a alimentar-se.
Enquanto o telescópio é desmontado e guardado no porta-bagagem, um corvo-marinho mergulha como uma bala nas águas do Atlântico. Segundos depois surge entre as ondas, por certo satisfeito, e deixa-se estar ali, bem à vista de todos.
Fonte: Helena Geraldes/Público