segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Em Silves treinam-se os linces para serem selvagens


    A conservação do lince-ibérico em Portugal está a mudar. Pela primeira vez há animais de cativeiro em treino para a liberdade e zonas potenciais para reintrodução em avaliação.
Fresa sai das sombras entre a vegetação, com a confiança calma de um felino. Atrás seguem as suas quatro crias. No final de uma tarde de Verão, a fêmea de lince-ibérico deita-se e fica atenta às brincadeiras do Joio, Janeira, Jerupiga e Joeira, que trocam marradinhas, dentadas e patadas, e se enredam umas nas outras. As crias que rebolam entre as ervas são quatro das 19 que nasceram entre Março e Abril em Silves, no Centro de Reprodução em Cativeiro do Lince-ibérico. Agora, naquele vale vivem 33 linces: 16 adultos e 17 crias (duas crias de Flora e Bisnaga acabaram por morrer).

“Fechámos um ciclo: lançar o centro, produzir crias e começar a treiná-las para a reintrodução”, diz Rodrigo Serra, director do centro, inaugurado em Outubro de 2009, enquanto observa do cimo de um monte os linces lá em baixo num dos cercados. Só se ouve o vento e o zumbido dos insectos e nada parece perturbar o felino das barbas e pêlos em forma de pincel na ponta das orelhas. Mas a realidade é bem diferente. Esta é uma espécie criticamente em perigo de extinção.

Pela primeira vez, Portugal vai ajudar a reforçar com linces nascidos em cativeiro as últimas populações selvagens de Lynx pardinus, agora reduzidas a pouco mais de 300 animais.

“Neste momento, estamos muito centrados no treino de linces” para a reintrodução no início de 2013, diz Rodrigo Serra, com um walkie-talkie na mão para comunicar com a sala de videovigilância, num edifício a uns metros de distância dos cercados. “Temos quatro ninhadas, de 15 animais, a serem treinadas” e todos os linces “têm peso e tamanho dentro da média”. Dos 15 animais, a ninhada de quatro crias de Castañuela tem 15 dias de avanço em relação às outras 11, que nasceram depois. “A ninhada da Castañuela é a nossa ninhada de teste, nós vamos aprendendo com ela e aplicando às outras.”

Parte do treino consiste em desabituar os linces dos humanos. “Para as ninhadas de reintrodução é muito importante a não intervenção. Isso vai ajudá-las bastante no campo”, explica o director do centro. “Tentamos não lhes dar uma rotina de alimentação e jejuam a dias diferentes da semana para os obrigar a desenvolver aptidões sociais e de caça.” A próxima fase será introduzir coelho-bravo e garantir que o conseguem caçar.

Estudar o lince de perto

Para que tudo corra bem, o centro faz videovigilância, 24 horas por dia, em três turnos e por sete pessoas. Rafaela Fiúza, 21 anos, é voluntária há dois meses. “Sempre gostei de animais selvagens e o lince-ibérico é fantástico.” Enquanto fala, Rafaela comanda as câmaras à distância, para encontrar os linces que se confundem entre a vegetação dos cercados. “O meu trabalho é ver o que estão a fazer. Os dados são registados em fichas e utilizados para estudos de comportamento”, acrescenta a estudante na Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade Técnica de Lisboa.

Depois de uma época com avanços a nível da reprodução do lince-ibérico – como a sobrevivência de duas crias, Janes e Juromenha, que foram rejeitadas pela mãe, Bisnaga, criadas à mão pelos veterinários e depois adoptadas pela progenitora – os trabalhos em Silves permitem ficar a conhecer melhor este felino. “Conseguimos reunir as crias à mãe e que fosse esta a acabar de treinar a Janes e a Juromenha, especialmente para caçar e matar as presas. Isso é muito importante e dificilmente poderia ser feito por humanos”, diz Rodrigo Serra.

“Aqui temos a oportunidade de estudar os animais de perto. Estamos a aprender como é que um lince aprende a caçar, como é que desmama, como é a interacção entre linces nas mesmas ninhadas, qual o ritmo de crescimento e as aptidões sociais”, acrescenta.

Joana Bolacha, 26 anos, chegou há dias e vai ficar dez meses na videovigilância. “Estou a fazer o estágio final de Mestrado, sobre reprodução e comportamento de lince-ibérico” na mesma universidade que a Rafaela, diz, sentada noutra cadeira da sala de videovigilância. “No princípio era difícil descobrir onde estavam os linces. Todos os ramos me pareciam animais. Agora já sei procurar as típicas manchas no pêlo”.

Vanessa Requeijão, 28 anos, é tratadora em Silves há ano e meio. É das poucas pessoas que entram nos cercados. Alimenta os animais, verifica os bebedouros, limpa e faz o enriquecimento do local para os animais não se aborrecerem. “Todos têm personalidades diferentes. Há uns mais comunicadores, outros super-esfomeados, outros mais calmos e aqueles que reclamam muito”, conta. “Apetece-me sempre ficar mais tempo dentro dos cercados, a olhar para eles. Mas assim que acabo o meu trabalho, tenho de sair.”

Avaliadas potenciais áreas de reintrodução

Ao mesmo tempo que se treinam animais em Silves, avançam os trabalhos para preparar o território natural. Lurdes Carvalho, coordenadora-executiva do Plano de Acção para a Conservação do Lince-ibérico em Portugal, publicado a 16 de Maio de 2008, afirma que estão a ser avaliadas as potenciais áreas para reintrodução - Malcata, Moura/Barrancos e Guadiana – com base em diversos parâmetros, como a existência de presas para o lince (coelho bravo) e eventuais ameaças futuras: como as armadilhas não selectivas e as estradas. Este trabalho – que quer conjugar a matriz de habitat actual com a que os linces usaram no passado - será discutido com Espanha, no âmbito do projecto ibérico Iberlince (2011-2016).

A partir do Outono “vamos reforçar as medidas para melhorar as presas do lince. Inicialmente, os trabalhos vão incidir sobretudo na zona de Moura/Barrancos”, no Baixo Alentejo, em herdades públicas, diz a responsável do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF).

“Tudo isso será feito com o apoio das actividades diárias das regiões: agrícola, florestal e cinegética”, acrescenta, lembrando que decorrem contactos com locais, nomeadamente juntas de freguesia, proprietários e caçadores. “Todas essas actividades são importantes para que o lince possa voltar e são compatíveis, já o foram no passado, e, muitas vezes, desejáveis.” Para o conseguir, as autoridades vão “ter especial atenção à forma como os trabalhos serão apoiados pelas medidas agro-ambientais. Tudo porque estamos a falar de desenvolvimento regional” e o regresso do lince “pode ser um motor desse desenvolvimento.” A presença deste felino afasta outros predadores e, ao alimentar-se de coelhos mais frágeis, ajudará as populações a ficarem mais fortes e a resistir às doenças, salienta.

As autoridades portuguesas preparam-se para fazer o “balanço do plano de acção” da espécie e para começar a rever o documento em 2013, disse Lurdes Carvalho. Para já, a responsável considera que o trabalho feito desde 2008 teve uma “evolução positiva”. “Construiu-se o centro de reprodução e neste momento tivemos um ano com um número de crias muito interessante. No terreno, fizemos medidas de melhoria do habitat que agora vamos reforçar em conjunto com os nossos parceiros”, acrescentou. “O conjugar dos esforços terá de ser intensificado para preparar o terreno e no futuro haver capacidade de suporte para a reintrodução de lince.”

Fonte: Helena Geraldes/Público  


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